Sunday, December 13, 2009

Crônica de um dia qualquer

Hoje é domingo.

Mas podia ser sábado. Ou quarta-feira. Ou...

O dia está cinza, chuvoso, mas no meu quarto está batendo uma brisa fresca, gostosa, que vem com aquele cheiro de dia frio. Cheiro de dia frio...devo ser o único que parou para pensar nisso.

E nada do telefone tocar.

Falei com ela ontem. Ela me jurou que ia ligar hoje e me fez jurar que não ia ser eu a ligar. Seria melhor assim. Eu quis insistir, saber o porque, mas ela não me disse. Teimou, bateu o pé e prometeu que ela ia me telefonar. Me fez jurar que não ligaria.

Tudo bem. Pedido esquisito...estranho...mas nada que não possa ser feito. Aliás, por que é mesmo que é um pedido estranho?

Não sei, e nem faz diferença. O que importa é que ficou combinado assim: ela me ligaria assim que pudesse. Queria combinar tudo o quanto antes. Tudo bem, fiquei de esperar.

Se hoje fizesse sol em vez de chuva, eu poderia dizer que o sol já vai alto no céu. Mas hoje nem essa figura poética posso usar, porque não tem sol. Por acaso será que "a chuva vai alto no céu" ficaria bem nessa parte?

Não, não mesmo.

E nada do telefone tocar.

Melhor tentar ler alguma coisa. Pego um livro, folheio. É inútil, os pensamentos viajam, divagam. Se de repente a cabeça imagina um cavaleiro medieval de espada em punho e elmo na cabeça, montado imponente em seu cavalo, de repente ele vira fumaça e vejo aquele rosto, ali, flutuando, a cabeça vai longe. Tento ler, mas as palavras começam a perder o sentido, e de repente, percebo que li três páginas e não estou entendendo mais nada.

Volta e meia a cabeça se vira para o celular, ali, em pé no suporte, em cima da escrivaninha.

E nada dele tocar.

Desisto de ler, é inútil. Boto o livro de lado, vou procurar o que fazer. Quem sabe ir até a cozinha, beber alguma coisa.

Pego um copo e uma jarra de água, e estou prestes a servir, quando escuto um bip.

Largo tudo, saio correndo, vou ver o que é. Agora é!

Agora é, realmente...o computador. Foi um apito, indicando o fim de mais um download.

E nada do telefone tocar.

À medida que o tempo passa, pensamentos e palavras parecem se perder. A televisão parece sempre a mesma, nenhuma notícia chama atenção no jornal, e na internet o muito que há para fazer se revela chato, inútil. Textos e informações se repetem, e parece que tenho lido os mesmos sites há mais de uma semana.

Agora as horas já vão longe, muito longe, a chuva continua caindo, o frio continua inundando o quarto, e parece que simplesmente não há mais o que fazer para passar o tempo.

Bem, eu poderia adiantar o relógio, quem sabe...

Não, deixa pra lá. Podia talvez assistir um DVD. Ou sair para dar uma volta, esfriar a cabeça. E levaria o celular. E não haveria mal algum...se ela

ligasse, eu atenderia do mesmo jeito, e estaria tudo resolvido.

Bah, mas tá chovendo. Andar na chuva é ruim demais. Melhor ficar aqui, mesmo.

E nada do telefone tocar.

O tempo passou, a chuva se foi e o dia também. Mas o frio continua inundando o quarto, disputando espaço com a minha própria ansiedade. Páreo duro...

A noite caiu, as horas avançaram, e nada. Eu deveria ter ligado. Deveria ter dito tudo o que ainda não disse...ou não quis dizer...ou deveria ter dito que queria dizer...

Seja como for, agora é tarde demais. Melhor desligar o celular e ir dormir.

Pego o telefone, abro o flip...

E dou uma gargalhada.

Daquelas de fazer os vidros estremecerem, e a poeira levantar do chão limpo.

Olho de novo o telefone e continuo rindo.

Só rindo, mesmo.

Como ela poderia ter ligado se esqueci de ligar o telefone?

Aliás, ela ligou. Um monte de vezes.

Mas talvez agora seja tarde demais...

Saturday, December 05, 2009

Perfeito

Enquanto a inspiração não vem, fiquem com a poesia incrível de Louis Armstrong em What a Wonderful World.

Eu vejo as árvores verdes, rosas vermelhas também
Eu as vejo florescer para nós dois
E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

Eu vejo os céus azuis e as nuvens tão brancas
O brilho abençoado do dia, e a escuridão sagrada da noite
E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

As cores do arco-íris, tão bonitas nos céus
Estão também nos rostos das pessoas que se vão
Vejo amigos apertando as mãos, dizendo: "como você vai?"
Eles realmente estão dizendo: "eu te amo!"

Eu ouço bebês chorando, eu os vejo crescer
Eles aprenderão muito mais que eu jamais saberei
E eu penso comigo... que mundo maravilhoso

Sim, eu penso comigo... que mundo maravilhoso!

Monday, November 30, 2009

Para ler e refletir

Transforme as resoluções de ano novo em resoluções de ano inteiro.

Deseje todos os dias a todos que você gosta, e a você mesmo, tudo que se deseja de bom em dezembro.

Viva mais o espírito do Natal nos aniversários, reuniões de amigos, encontros, passeios, viagens.

Ria mais, do mesmo jeito que você ri (ou costumava rir, ou pretende rir, ou tem vontade de rir) nas noites dos dias 24 e 31.

Organize festas, encontros, passeios e viagens com a mesma alegria do fim do ano.

Mande mais cartões a quem você gosta, mesmo que não sejam de Feliz Natal ou Próspero Ano Novo.

Deixe seus problemas um pouco de lado assim como na hora em que estouram os fogos no céu.

Brinde mais com os amigos, a família, os agregados, os conhecidos, os amores, os amantes, os amados.

Reuna mais a família em volta da mesa, mesmo que seja para uma simples conversa.

Dê mais sorrisos espontâneos, daquele jeito que se faz ao ver as crianças abrirem os presentes do Papai Noel.

Enfeite e arrume mais a casa, nem que seja com uma limpeza, do jeito que você faz quando o ano termina.

Ouça mais músicas especiais, em datas mais do que especiais (embora não seja preciso ouvir Bate o Sino no Dia das Mães).

Seja mais Papai Noel durante todo o ano, mesmo que seus presentes sejam um sorriso, um abraço, uma palavra de conforto...

Faça mais promessas, mas dê preferência às que você possa cumprir.

Descanse mais e mais gostoso, o quanto for possível, como você faz no primeiro dia do ano.

Se organize mais para evitar filas, trânsito e confusões, mesmo que seja no meio de abril em vez da véspera de Natal.

Renove todos os dias as esperanças e as expectativas assim como se faz em todo 31 de dezembro.

Use mais palavras e pensamentos positivos, daquele jeito que se faz quando o ano termina.

Lembre-se todos os dias, e não apenas quando novembro acaba, que o tempo está passando cada vez mais rápido.

Escreva e leia mais textos positivos de fim-de-ano...

Friday, November 27, 2009

Duvida

A dúvida o torturava.

Era como uma fagulha enfiada em sua cabeça, latejando, doendo, incomodando.

Vinha assim há dias, semanas, meses. O que fazer? Como fazer? O que dizer? Afinal, o que significava tudo aquilo? Como não pensar naquilo? Como não dar àquilo mais importância do que realmente tinha?

Não sabia. Se esforçava, lutava, procurava entender, mas não conseguia. E quando ele menos esperava, lá estava ela de novo, incomodando. Aumentavam aos poucos as dificuldades para se concentrar.

Tentava se distrair, mas era pior. Não entendia, não sabia como, não conseguia ver, perceber, enxergar. Tinha a sensação de que já conhecia o caminho, sabia por onde ir ou não ir, mas mesmo assim insistia na parte mais difícil, no pior atalho.

O que fazer? Como fazer? O que dizer? E o que não dizer? E se tentasse algo diferente? E se ficasse calado? E se não dissesse nada? E se agisse mal? E se algo acontecesse? E se algo não acontecesse?

Tentava relaxar, brincar, esquecer, mas era impossível. Às vezes se pegava olhando para si mesmo e dizia...afinal, quem sou eu? Esse sou eu? Por que de repente eu ajo desse jeito? E por que passo o tempo me perguntando as coisas? E por que não mudo? E por que o tempo passa e eu continuo o mesmo?

Às vezes sentia vontade de chorar, botar tudo para fora. Em outras, não sabia se isso era o mais certo, o mais indicado, se estava agindo bem...às vezes se sentia como uma criança mimada, que diante da dúvida, da dificuldade, começava a chorar e reclamar...

Às vezes se sentia mal por se fazer tantas perguntas, achar tantas dificuldades, viver de forma tão intensa. Tinha vontade de mudar, mas aí se perguntava: devo mudar? Devo me transformar? Em que, por que e para que? De que forma? E se vou para algum lugar, para onde, como, por que, para que e de que forma?

Não sabia, não sabia, não entendia, não conseguia ver o porque...mesmo que ele estivesse na sua frente...não aceitava, continuava duvidando, perguntando, questionando, indagando...

Como a dúvida era fria e cruel. Mas, às vezes, ele se perguntava...

...será que era dúvida mesmo?

Tuesday, November 17, 2009

O sonhador e a menina

Aquele era um dia estranho.

Ele se lembrava que, quando saiu de casa, o dia estava cinza e nublado. Depois, fez sol. Em seguida, choveu e ventou. Agora estava sol e calor de novo.

Caminhando pela Avenida Rio Branco, se espremia em meio à multidão que passava pela Rua do Ouvidor para tentar chegar logo ao ponto do ônibus. Não que estivesse precisamente atrasado...mas estava cansado e queria chegar logo. Tinha a sensação que, se fizesse as coisas mais depressa, o dia passaria mais rápido e logo ele estaria em casa dormindo.

Em meio à multidão que circulava pela calçada, era difícil se mover rapidamente. O suor escorria por seu rosto, peito e braços, empapando a camisa pólo verde.

Ao cruzar a calçada para desviar de uma árvore, ele a viu.

Estava ali, em frente a uma galeria, com um bolo de panfletos na mão, tentando distribuí-los a quem passava. Vestia uma blusa branca justa e uma minissaia jeans, tinha os cabelos muito negros e cortados na altura do queixo. O rosto era de um ar muito simples, e ao mesmo tempo, muito forte, com dois belos olhos azuis brilhando quase que intensamente.

Ela não tinha sucesso em sua tarefa "panfletária": os pedestres, em meio ao corre-corre da hora do almoço, mal paravam para olhá-la.

Mas ele parou. De repente, esqueceu o cansaço, o calor, o corre-corre, a hora...e ficou ali, só observando.

Distraída, ela a princípio não percebeu nada. Mas, dali a pouco, ao se virar para tentar entregar um panfleto, seu olhar se cruzou com o dele. E os dois ficaram se observando. Tímida, ela sorriu discretamente e baixou o rosto, como se estivesse procurando alguma coisa no chão.

E ele continuou olhando fixamente, agora esboçando um leve sorriso, e foi se aproximando devagar, sem pressa nem preocupação, cruzando a avenida e desviando dos pedestres para olhá-la mais de perto. Já ela continuava a rir, sem-graça, e volta e meia o olhava...mas logo se distraía, baixava o rosto, voltava a distribuir seus panfletos.

Quando ele estava quase chegando perto dela, dois operários carregando uma enorme tábua de madeira atravessaram o caminho, tapando totalmente a visão.

Esperando pacientemente, ele teve vontade de quebrar logo a tábua para chegar do outro lado. Mas esperou. Aqueles segundos pareciam horas.

E finalmente, quando os operários passaram, levando sua enorme tábua...

...ela não estava mais lá.

Atônito, espantado e surpreso, ele olhou por todos os lados, procurando-a. Para onde ela teria ido em tão pouco tempo? Teria fugido? Se escondido? Mas como era possível...só haviam se passado alguns segundos, não, não era possível.

Enquanto isso, o tempo louco voltava a escurecer, e o vento anunciava uma nova chuva para muito breve...

Monday, November 16, 2009

O vidro

Antigamente ele não existia.

Em seu lugar, não sei o que ficava exatamente...mas acho que era um tapume de madeira. Isso, antes mesmo de existir um banco naquele local.

No tempo que ele não existia - e poxa, nem faz tanto tempo assim - tudo era tão diferente. As ideias eram tão diferentes. A angústia do dia passado parecia mais real, e a ansiedade pelo dia seguinte, maior. De certa forma, as preocupações seguiam pelo mesmo caminho.

Talvez as coisas fossem mais surpreendentes, menos estáveis, como o ônibus que surgia de repente na curva. Pudera: aquele era um tempo de construir, mas sem muita noção do que. Era um tempo de plantar sem saber o que seria colhido...poético isso.

No tempo em que aquele vidro não existia, tudo era muito diferente. Ou será que era menos igual?

Não sei. Mas o fato é que o momento da chegada do ônibus era mais imprevisível. Ou será que era o horário que variava sempre?

Também não sei. Mas fato é que, em algum momento, surgiu o vidro, foi-se o tapume. E o horário passou a ser mais ou menos o mesmo. E a espera do ônibus mudou...ganhou uma ajuda, um apoio. Agora já dá pra ver quando ele surge na curva, lá adiante, e a expectativa aumenta...

Será que um dia olharei para trás e direi o mesmo de hoje?

Monday, November 09, 2009

Cinco horas

Sempre me perguntei o que esse horário tem de mais. Sempre achei que ele era quase uma parte solta do dia - tipo manhã, tarde, cinco horas e noite.

Talvez o mais óbvio é que seja o horário em que muitas crianças saem do colégio. De uniforme, mochila às costas e companhia nem sempre agradável, circulam pelas ruas, pulando, correndo, brincando, seja sozinhas, com seus acompanhantes, umas com as outras, numa mistura de liberdade e a sensação de que logo estarão de volta no dia seguinte.

Em meio a tudo isso, o cheiro mais claro é o de pipoca. Aquela coisa meio óleo, meio sal, meio açúcar, meio doce, meio salgado, que pipoca de casa não tem e nunca terá. Aquele cheiro que sai de trás da lâmpada amarelada da carrocinha de pipoca, um eterno mistério - não existe pipoca melhor que a do pipoqueiro.

Em frente à padaria, o cheiro de pão às cinco da tarde é sempre muito claro. Não sei o que essa parte do dia tem de mais, mas parece que os cheiros ficam mais soltos. Nunca me ocorreu sentir cheiro de pipoca nem de pão ao passar as onze da manhã pela padaria/pipoqueiro. Mas se passar as cinco, lá estão eles.

Parece que as cinco horas há mais velhinhos caminhando nas ruas, mais cachorros com seus donos, mais gente voltando da praia, mais entregadores com suas bicicletas, mais carros circulando. Às vezes tenho a sensação de que todo mundo fica olhando o relógio, esperando dar cinco horas, para poder sair. Ou será que é só impressão minha?

Para quem não tem o privilégio da liberdade das ruas, do caminhar solto pelas calçadas, do ir e vir - é um horário propício para a prática do cooper, porque o sol já se foi e a noite não chegou - e encara o escritório, a repartição, a firma ou a empresa, cinco horas é o horário do "quase". Para quem entra cedo, então, é muito "quase": está "quase" na hora de ir embora, o trabalho está "quase" pronto, o dia está "quase" no fim, o happy hour é "quase" obrigatório, "quase" que eu não termino esse relatório antes do expediente...

E aos poucos, conforme os minutos passam, toda essa atmosfera vai se dissipando, e quando chega seis e meia, por aí, tudo começa a voltar ao normal...

Ou será que cinco horas é o normal e o resto do dia que é estranho?

Vai saber.

Algo sobre o Leblon

Leblon.

Meu bairro já não parece mais o mesmo. Não sei o que mudou nele, ou talvez em mim. Mas meus passos são mais firmes agora, seja lá o que isso signifique.

Essas ruas nunca pareceram tão iluminadas, nem tão largas. Ao mesmo tempo, aqui ainda é possível ouvir um pouco do silêncio, fugir da sensação de cidade grande, nem que seja por míseros dez segundos. Se tempo é dinheiro, cada segundo vale muito, muito...

A música nos ouvidos não permite que se pense demais, nem que o silêncio seja maior do que alguns segundos. O som relaxa, distrai, faz esquecer. A vontade que tenho é cantar junto, mas tenho que lembrar sempre de controlar o movimento da boca e perceber se estou cantando alto demais. Mais maluco do que o costume é algo que não pretendo parecer.

Ou talvez não. Que talvez se danem essas pessoas que, ao ver a boca mexendo, me lancem olhares recriminatórios, de censura, duros, frios, como que me mandando ficar quieto. Odeio olhar de censura. Não sei porque todos me vêem desse jeito. Será que não é normal alguém pensar alto, cantar alto?

Às vezes tento prender as ideias na cabeça, mas é muita coisa. Preciso falar, dizer. E nem sempre escolho os melhores locais para isso. Sim, não devo lá ser muito normal...muito menos por escrever um texto sobre isso...

Os passos seguem tranquilos e firmes, andando pelo Leblon, alguma coisa meio sem rumo, sem norte, mas ao mesmo tempo, com um objetivo bem claro. E lá vai a música. E o carro que passou. E mais alguém com um cachorro. E o brilho do sol que passa pelas árvores e ilumina os prédios.

Não sei porque tanto cinza, tanto preto. Às vezes me sinto em uma selva de concreto (onde foi que já li isso?). Há algo que me incomoda em tudo isso. Meu bairro mudou, perdeu o ar bucólico de alguns textos atrás. Tampouco tem as sombras, o silêncio e o vento da madrugada. Agora parece simplesmente um caminho pelo qual sigo para chegar em casa.

Onde estarão a poesia e a prosa perdidas? E aquele olhar bonito, plástico? E as livrarias? E sim, a praia, sempre ela...não, não ela, não aqui, não agora.

Não agora.

Friday, November 06, 2009

Eu, a casa e o silêncio

Abri os olhos. Estava deitado de bruços sobre a cama, o rosto encharcado de suor. Nem um vento batia. Por uma fresta da janela, entrava um tímido raio de sol.

Me estiquei na cama, virei de barriga para cima e encostei a cabeça no travesseiro, também molhado de suor. Olhei o relógio na parede: quinze para as oito da manhã.

Era cedo ainda, meu desejo era dormir mais um pouco. Bocejei. Tentei fechar os olhos, pegar de novo no sono, mas nada. Não tinha mais vontade de dormir, embora tivesse sono. Ou seria o contrário?

Sem jeito, sentei na cama, me espreguicei, botei os óculos. Confirmei a hora e fiquei de pé.

Dei três passos até a porta do banheiro, entrei, fechei-a. Fiz minhas necessidades, lavei as mãos, o rosto, saí.

No silêncio da casa, apenas meus passos ecoavam. Todos dormiam profundamente, naquele estado de sono tão bonito de observar, de ver. Mas temo acordar as pessoas quando olho demais. Então voltei à cozinha, abri a porta e saí para o quintal.

Fazia um dia lindo, maravilhoso, de sol escaldante, céu azul sem uma nuvenzinha no céu. E nenhum barulho, nenhum ruído, nada. Na casa quase vazia, apenas o silêncio. Nem lembrava o mesmo cenário há três dias atrás.

Hoje é o dia
Eu quase posso tocar o silêncio
A casa vazia
Só as coisas que você não quis
Me fazem companhia...
Eu fico à vontade com a sua ausência...


A música do Capital Inicial veio, assim, discreta, sem pedir. Sem rádio, sem nada. Veio na cabeça. Era a síntese daquele momento tão estranho e tão singular. Só essa parte. Depois disso, perdia o sentido, a razão, a força...

Caminhando pela varanda de chão de madeira, me aproximei da mesa vermelha com quatro cadeiras em volta. A mesma que estava cheia e movimentada nos últimos dias. Agora não havia ninguém. Pelo chão, uma parte do jornal de domingo estava caída, suja, rasgada. Em uma das cadeiras, o resto do jornal. Lido, relido, remexido, agora já não servia para mais nada.

Em cima da mesa, já não havia nada. Minto: havia um pedaço de linguiça, um que caíra do prato no dia anterior, e que provavelmente não fora limpo. Curiosamente, não havia formigas em volta.

Deixei a mesa lá e fui me sentar no sofá, mais adiante. Olhar o céu. Pensar um pouco no que fazer. Era cedo para ir embora e tarde demais para ficar...

Depois de quatro segundos sentado, cansei e decidi fazer alguma coisa. Voltei ao quarto, enfiei a mão na mala e procurei o livro que havia trazido.

Quase pude lembrar das palavras de minha mãe dizendo que aquele livro era muito pesado para uma viagem tão curta, e que dificilmente teria tempo para lê-lo.

De certa forma, faltara tempo. Mas agora não. Agora tinha todo o tempo do mundo.

Voltei ao sofá, deitei e comecei a ler. Até que chegou a hora de ir embora.

Despedidas, beijos, abraços. E a casa ficou um pouco mais vazia...

Thursday, November 05, 2009

O sonhador, o "talvez" e o mar

"Beijo, tchau".

Ela desligou e ele ficou ali, parado, estático, meio sem saber o que fazer. Tinha vontade de chorar, e ao mesmo tempo, raiva de si mesmo.

Ela não tinha ideia do quanto ele se dedicara. Comprara flores, chocolates. Fizera questão de mandar entregar, com direito à cartão e tudo. Ligara para ela várias vezes. Marcara tudo.

Sim, quando ela sofreu, da última vez, quem estava a seu lado? Ele. Todo o apoio, toda a atenção. Dias e dias de telefone, e-mails, MSN.

Agora, tudo parecia terminado, e olha que era antes mesmo de começar. Com o telefone em uma das mãos e o buquê na outra, não sabia direito nem o que fazer. O que pensar. Como reagir.

Não era a primeira, nem seria a ultima vez. Mas ele tinha a sensação de já ter visto aquele filme outras vezes. E não falava de uma, mas sim de várias.

Tinha vontade de chorar, raiva de si mesmo, angústia, aflição, desapontamento. E de novo aquela sensação de falta de sorte, de que tudo dava sempre errado...

Ainda meio sem saber o que fazer, guardou o telefone em um bolso e meteu a mão no outro, à procura das chaves. Achou. Tirou a chave, e ainda meio cambaleante, o buquê para baixo, seguiu até a porta da rua. Abriu, espiou dos dois lados e saiu.

Desceu, tentou passar rapidamente pela portaria, sem ser visto. Não deu: quase esbarrou com o porteiro. Ficou sem-graça, tentou disfarçar, deu a volta e abriu a porta da rua.

Sentiu o vento gelado bater em seu rosto e se sentiu um pouco melhor. Para onde, agora?

Não fazia ideia, não sabia. Foi quando se lembrou do mar. Quando era pequeno e estava triste, seu pai costumava levá-lo para ir ver o mar. O barulho das ondas, a água batendo na areia, tudo isso costumava acalmá-lo.

Sim, a praia. Tinha esse privilégio. Morava perto. E sentindo voltar um pouco da confiança, seguiu para lá.

Aquela hora, não havia ninguém. A noite já havia caído há tempos, e olhando no horizonte, via apenas a branca faixa de areia e o mar batendo com força.

Desceu dois degraus da escada que levava à areia, se sentou, botou o buquê de lado e ficou olhando o mar, ouvindo o barulho das ondas, sentindo aquele vento gelado bater no rosto.

Tentava pensar, mas era difícil continuar. Como um texto que chega a um ponto onde não se sabe para onde vai, ele também não sabia mais o que fazer. Tentava pensar, arrumar as ideias, mudar a mente, mas nada funcionava.

Talvez o problema fosse justamente esse: pensar demais. Quanto tempo havia perdido pensando em como conquistá-la...ela e todas as outras...quanto tempo pensara se lamentando por tudo o que acontecera...e quanta coisa deixou de fazer nesse meio tempo...

Largou o buquê ali mesmo, botou as mãos nos bolsos e começou a voltar para casa.

Tuesday, October 13, 2009

Madrugada

A sombra da última cerveja já ficou para trás. Os pedidos insistentes para que eu ficasse, também.
É bem verdade que a vontade era ficar. Tomar mais uma, mais duas, mais três. Mas não posso. Não hoje.
Enquanto caminhava pela praça deserta, o vento balançou as folhas e fez com que as sombras se mexessem. Enquanto isso, na cabeça, outras sombras se movem.
“Volta. Corre lá. Ainda dá tempo”.
Não. Não hoje, digo baixinho, sob pena de dar de cara com alguém e parecer um louco falando sozinho no meio da madrugada.
Não hoje...
E atravesso a praça rápido, apertando o passo, talvez por medo de marginais, talvez por medo de não agüentar e acabar voltando para tomar mais uma.
Que é sempre a última e acaba sendo sempre a primeira...de muitas.
Agora, deixando a sombra da praça e as luzes dos prédios, é tarde demais. Não existe mais volta. Nem tampouco barulho de folhas, nem sombras se movendo, nem seguranças e porteiros à espreita.
Apenas o silêncio, o silêncio calmo, relaxante e assustador da madrugada.
Me preparo para atravessar a rua, mas lá adiante uma “pequena multidão” me causa um arrepio.
O que estarão fazendo todos juntos, no meio de uma praça vazia, em plena madrugada? Pelo jeito...boa coisa não é.
Melhor desviar. Seguir outro rumo, outro caminho. E a saída pela esquerda é sempre a mais útil.
Será, mesmo?
Pela esquerda, sim, até que a “pequena multidão” não mais me veja, e eu possa passar tranqüilo para o outro lado.
Cruzo com um homem de boné e mochila. Por alguma estranha razão, passamos incólumes um pelo outro, como se ambos não existíssemos, ou como se estivéssemos tão envoltos nas sombras da noite que nossa presença se torne tão pouco importante.
Atravesso a segunda praça por um caminho alternativo, sem passar pela “multidão”, e retomo o caminho como se nada tivesse acontecido.
E que calor terrível que está fazendo. Nem um vento bate...
Ou será que eu estou andando rápido demais?
Atravesso uma rua, duas. Fui pensar e falei alto, chamei a atenção de um motoqueiro que nem tinha visto.
Melhor assim, com essa pinta de louco ele fica na dele e eu na minha.
Desviando do táxi, atravesso mais uma rua. Agora o cenário é outro. Há luzes, cervejas, bares, gente conversando.
Elas estão lindas.
Como sempre.
E como falam. E de onde será que saem essas vozes tão bonitas?
Mas preciso seguir, e assim, mergulho mais uma vez nas sombras da noite. Um prédio, uma casinhola de chaveiro.
Um casal passa por mim, e novamente, nem me nota. Melhor assim.
Atravesso outra rua, duas, e agora pela direita, saindo das sombras e mergulhando novamente na luz.
Aqui também há bares, mas estes já fecharam. Há carregadores, porteiros, gente circulando, mas nem um sinal delas.
E nem uma cerveja, diga-se de passagem.
Atravesso outra rua, passo por uns sacos de lixo e levo um susto com um catador de latinhas.
Ah, é só um catador de latinhas.
Mais bares. Mais gente conversando. Mais luzes, mais cerveja. Agora há táxis, também.
Elas continuam lindas, como sempre.
E mais uma rua atravessada, e o caminho está perto do fim. E estou pensando em escrever um texto sobre esse passeio em uma madrugada qualquer, em um dia qualquer. Puxa, isso vai ficar tão legal...
Cruzo com um grupo, dessa vez eles me notam. Mas não há nada de estranho com eles, nada de “pequena multidão”.
Cruzo o sinal, mais duas ruas, e aperto o passo. Agora falta pouco, muito pouco.
Meto a mão no bolso, pego a chave.
O porteiro é mais rápido e abre a porta antes.
Saio das sombras e mergulho no silêncio do prédio.
E do silêncio do prédio para as vozes de casa, para as sombras do quarto, e por fim, para a sombra mais profunda da madrugada...
O sono.

Thursday, October 08, 2009

O nascimento de uma estrela

"O processo ocorre quando uma massa gasosa de poeira gira em torno de um centro gravitacional..."

Não, não é nada disso. Vamos começar de novo.

"Tudo começa com o processo de escolha. Quando se tem a pessoa, é preciso pensar de que forma ela será uma estrela famosa e..."

Não, também não é isso.

Não é esse nascimento de estrela que eu busco. Não quero a astronomia fria e crua dos complicados livros de física, nem o trabalho que torna um ser humano uma pessoa capaz de se destacar ao representar um papel, seja ele qual for.

Para mim, o nascimento de uma estrela acontece às seis da tarde.

Vamos imaginar...seis da tarde de um dia muito claro e quente, daqueles onde a praia estava cheia mesmo durante a semana, o sol brilhou o tempo inteiro e o céu estava azul brilhante, sem nenhuma nuvem, do tipo azul que cega só de olhar para cima.

Com um pouco de sorte, consigo estar na janela um pouco antes, ali pelas cinco, cinco e meia, no fim desse belo dia. O ponto do dia em que o sol já baixou, deixando para trás as casas e os morros no horizonte, mas a noite ainda não chegou. Como se a luz do sol nos desse o último gostinho de sua presença.

O céu ainda está azul, mas vai mudando para um vermelho rubro, enquanto a luminosidade baixa. Quem vê esse espetáculo, esse momento da vida em que o dia não é dia nem noite, sabe do que estou falando.

E então, aos poucos, a luz vai diminuindo, o céu começa a ficar cinza. Não sei exatamente quando ele escurece totalmente, talvez eu nunca tenha reparado nisso.

Aqui, ou ali, preciso estar muito atento, porque de onde menos espero, a noite quente vai revelar sua primeira e mais bela estrela, a de brilho mais forte e intenso, e que por mais que eu não entenda, parece piscar insistentemente na minha direção.

Pronto, nasceu. É assim que nasce uma estrela. E quase como um enxame, começam a surgir outras. Primeiro mais uma, depois mais outra, depois uma terceira, quarta, quinta, e daqui a pouco, são centenas de pontinhos de luz brilhando intensamente no céu escuro da noite.

Nada mais bonito que o nascimento de uma estrela.

Ah, antes que eu me esqueça: é claro que elas também nascem em dias frios, em dias cor-de-chumbo, em dias chuvosos, em dias nublados.

Mas não tem a mesma graça, nem a mesma poesia.

Sunday, September 13, 2009

Por enquanto...é mais um domingo

Mudaram as estações / Nada mudou / Mas eu sei que alguma coisa aconteceu / Tá tudo assim tão diferente / Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre, sem saber, que o pra sempre / Sempre acaba...
Por Enquanto, Renato Russo


A música veio, assim, sem pedir licença. Não está no meu MP3, nem no meu top cinco, nem no top dez, e muito menos eu a ouvi recentemente.

Veio assim, naturalmente, como uma mensagem qualquer, como uma resposta para as dúvidas, como um conforto a uma simples pergunta.

"Alguma coisa mudou de lá pra cá?".

Não sei. Mas lembro que os primeiros raios de sol daquela manhã de domingo banhavam os velhos prédios da Lapa enquanto o ônibus seguia, em alta velocidade, rumo à Praia do Flamengo. E enquanto as lágrimas teimavam em rolar pelo meu rosto.

Mas que droga, pensava eu. É ridículo. Não deveria deixar ninguém ver. Um homem desse tamanho chorando às seis da manhã de um domingo, depois de uma noite inteira se distraindo, rindo, bebendo, ouvindo histórias, falando bobagens.

Não há nada que justifique isso. Nada mesmo. Esse choro parece de outra pessoa, de outro ser, não parece meu. Não sou assim. Ou será que eu sou? Ou será que há algo que justifica tudo isso e não quero admitir?

Mas, quem disse que adiantava? O sol continuava subindo, o ônibus continuava seguindo, e eu continuava mal. Às vezes triste, às vezes chorando. Às vezes tentando lembrar...do que mesmo?

"Se a coisa ficar preta, faz uma piada que melhora."

Quem foi o idiota que inventou isso? Como se fosse simples assim, a gente faz uma piada, ri e daqui a pouco essa tristeza passa. Bem, na verdade é meio assim. Mas é difícil quando a gente teima em guardar as coisas para si, também. Não dá pra rir com tudo isso guardado. Melhor botar tudo para fora.

No bom sentido, é claro. Mas seria o ônibus na Lapa às seis da manhã de domingo o melhor lugar pra isso? Estaria o álcool me afetando de alguma forma? Ou...alguém estaria me afetando de alguma forma?

A memória dá saltos, pulos. Me lembro de gente se despedindo de mim em Copacabana, como se o ônibus não tivesse passado pelo Rio-Sul, por Botafogo. Tomara que eles não tenham reparado em nada, eu não teria cara para encará-los de novo. Ou não.

Me lembro do Corte do Cantagalo, e do sol já alto. Sempre adorei voltar para casa esse horário, hoje parece chato. Talvez porque falte alguém pra conversar. Ou talvez porque tenha gente demais no ônibus e eu não possa falar alto e dizer tudo o que penso, sob pena de ser tachado de louco.

Não que seja normal, mas louco também já é demais.

Me lembro da chegada ao Leblon, tão bonito sob o sol das seis da manhã, com seus pássaros cantando, suas ruas simpáticas, gente saindo para fazer exercício. Pô...tem que gostar muito pra fazer exercício essa hora. Ou então ir direto da noite. Tem maluco pra tudo.

Não, não fui fazer exercício, fui para casa. No caminho, xingava, chutava pedras, reclamava. E o Leblon tão bonito. E um dia lindo que nascia. E eu dizendo que passaria o dia emburrado. Como se estivesse de luto por alguma coisa. E cadê o espírito pra fazer uma piada pra melhorar o astral?

Tem a piada do disque-luto (liga pra lá e ouve um minuto de silêncio), mas era tão ruim que não consegui contar pra mim mesmo. E ela é tão ridícula e tosca que é engraçada, mas nem assim consegui rir.

E cheguei em casa dizendo que não tinha sido uma noite boa. Por que mesmo, hein? Nem lembro mais. A memória pula de novo, lembro que fiz um belo sanduíche e comi. Passava Chaves na TV, fiz questão de assistir. E no próximo "salto" já ouço a voz de alguém me acordando.

E um banho pra recobrar as forças, colocar as ideias em ordem, me refazer.

Foi quando a música veio, assim, de memória, sem pedir licença. Não está no meu MP3, nem no meu top cinco, nem no top dez, e muito menos eu a ouvi recentemente.

Veio assim, naturalmente, como uma mensagem qualquer, como uma resposta para as dúvidas, como um conforto a uma simples pergunta.

"Alguma coisa mudou de lá para cá?"

Wednesday, September 02, 2009

Perdidos e achados

Cheguei em casa, entrei no quarto, e quando me dei conta...ela não estava lá.

Por um instante achei que tivesse me enganado. Onde será que poderia estar? Comecei a procurá-la pela casa inteira.

Mas...que nada. Nem sinal. Nem sombra. E nenhuma resposta aos meus apelos.

Então, talvez...bem...estivesse na padaria. É...às vezes ela ficava por lá naquele horário, esquecida ali pelo balcão. Não custava nada ir verificar. Então, coloquei os sapatos, desci as escadas e fui atrás dela.

Pela rua, a angústia era enorme. Como isso podia ter acontecido? Não era possível que eu a tivesse perdido assim, num mísero instante. Não era possível que tivesse sumido sem mais nem menos, sem motivo, sem razão. E ela era tão importante para mim...e sabia bem disso.

Cheguei na padaria, e em vez de perguntar por ela, saí procurando. Passei o olhar por todos os cantos, todos os lugares, da porta à entrada da cozinha, e nada. Do balcão à caixa, nada ficou por ser verificado. Perguntei por ela.

Nada.

Voltei para casa desanimado, desolado, as mãos nos bolsos. Subi...e tive um estalo. Fui verificar o armário.

Vazio. Lá dentro não havia nada. Absolutamente nada. Fiquei desolado.

E num instante, percebi tudo. Era tudo tão claro para mim. Tão óbvio. Já sabia onde ela estava, e tinha de ir atrás dela o mais rápido possível.

Voltando à sala, mexi nas malas que havia comprado e arrumado naquele dia mesmo. Que cabeça a minha...esquecer uma coisa como aquela. É claro que ela só podia estar lá.

Em uma das malas, puxei uma etiqueta e verifiquei que havia um telefone. Peguei o celular e disquei.

Contei a história a quem atendeu do outro lado. Perguntei por ela. Tinha que estar lá.

Nada.

A busca foi em vão.

Nunca soube onde diabos perdi a minha carteira.

Monday, August 31, 2009

Reflexos

Os óculos escuros do pai fascinavam o menino.

Estavam sempre lá, pendurados no peito, presos à gola da camisa dele; balançavam quando se abraçavam, e se moviam sempre para lá e para cá. O movimento era muito rápido, suave...quase hipnótico.

Na primeira oportunidade, o menino pegava-os entre seus dedos e examinava-os. Quem sabe, buscando alguma resposta para aquele fascínio por trás das lentes escuras, das hastes pretas, daquela estranha marca vermelha e branca que ficava nas laterais.

Procurava entendê-los, quem sabe; virava-os do avesso, de cabeça para baixo, o colocava no braço do sofá, em cima da mesa, na beira do vaso de plantas. Depois, em si próprio e no próprio pai. E tirava de novo, e examinava, e buscava entender algo tão simples. Olhava bem para ele...

E se via refletido nele...naquelas lentes cinza-escuras.

O pai achava graça, ria, procurava mostrar o óculos. "Tá com o óculos do pai?"

A pergunta soa óbvia, mas parecia cheia de orgulho para o menino. E ele punha em si mesmo, e tirava de novo, e colocava na própria gola de sua pequena camiseta, e por fim o largava em um canto qualquer da casa, distraído com outros brinquedos e outros pensamentos.

Até o momento em que o pai pegava-os de volta, colocava em si mesmo - ou na gola da camisa, ou no alto da cabeça - e ia embora...

***

O tempo passou. O menino virou homem, cresceu. E sem se dar conta, comprou seu próprio óculos escuro - seja no singular ou no plural, o que ele menos queria saber era do português. Queria seu próprio óculos.

Mas já não havia o mesmo fascínio, o mesmo olhar de antes, a mesma empolgação. A mesma curiosidade, o mesmo exame, tentando entender algo tão simples. Comprara o óculos para...para...para que, mesmo? Nem ele próprio sabia direito.

E o óculos ficou lá, jogado em um canto da casa, guardado no estojo. Como mais da metade das coisas em seu quarto. Como mais da metade das coisas em sua vida.

Até o dia em que o sol o chamou, e o "menino" se lembrou de seu "velho" óculos. Respirou. Tinha um. Seria útil agora.

Abriu o estojo, colocou no rosto, se olhou no espelho. Perfeito. E lá foi ele atrás do sol.

Foi e voltou. Mas o dever o chamava, e lá foi ele de novo. Desta vez, se lembrou do "velho", e foi com ele. No caminho, tirou o óculos para enxugar o suor do rosto...e olhou bem para ele...

E se viu refletido naquelas lentes cinza-escuras.

"Tá com o óculos do pai?", perguntou uma voz em sua cabeça.

"Não, esse aqui é meu", respondeu ele para si mesmo. "Eu agora tenho o meu próprio."

E depois de examinar o óculos atentamente, virá-lo de cabeça para baixo, olhar a marca e o reflexo, enxugou o suor do rosto, botou o óculos de novo, e seguiu seu caminho.

Thursday, August 20, 2009

A vontade e a dúvida

A vontade é de gritar, dar um berro daqueles quase intermináveis.
De que adianta escrever dizendo que parei de sonhar, se isso em si não passa de um sonho? E de que adianta trabalhar tanto, se no fim o que se faz parece valer tão pouco? Se o que se faz em horas e dias é destruído em questão de minutos...
A vontade às vezes é de sumir. E a sensação é de cansaço puro, eterno, de um desgaste que nasce há algum tempo e vem desembocar hoje, quando alguma coisa idiota qualquer desperta tudo o que está guardado.
Vontade de sumir, sei lá, de ir para outro lugar. Que não é a quadra do Salgueiro, mas também não é melhor, nem pior...é apenas diferente. Péssima tentativa de fazer piada, reconheço.
A vontade é de dar um tempo mesmo, de desaparecer por uns dias, do tipo que nem as melhores férias do mundo conseguem. De simplesmente passar uma temporada em paz, refletindo, pensando, tentando entender...
Tentando mudar.
Eu sei, eu sei que não é o certo. A mudança está aqui, não lá fora. A mudança está em mim, está nas minhas ideias, nas minhas atitudes, e sumir manterá as coisas apenas como estão...
Mas o que posso fazer, se no fundo sinto vontade de sumir por uns tempos? Lutar contra isso? Enfrentar isso? Tentar transformar isso? Mas como, se é a vontade mais pura e profunda, a mais desejável?
Se o cansaço parece tão chato para um jovem de 20 e poucos anos...e se há coisas que não se pode transformar...
Ah, a vontade. Senhora de si...ou escrava de mim mesmo?
Quem sabe...quem sabe não fica para o próximo texto.

Tuesday, July 14, 2009

Pérolas do futebol

Algumas circulam há tempos pela Internet, outras eu mesmo adicionei. Nem todas tem autoria confirmada, mas certamente são muito divertidas. Aceito contribuições. =)

"Chegarei de surpresa dia 15, às duas da tarde, vôo 619 da VARIG." (Mengálvio, ex-meia do Santos , em telegrama à família quando em excursão à Europa )

"Tanto na minha vida futebolística quanto com a minha vida ser humana." (Nunes, ex-atacante do Flamengo, em uma entrevista antes do jogo de despedida do Zico)

"Que interessante, aqui no Japão só tem carro importado." (Jardel, ex-atacante do Grêmio)

"As pessoas querem que o Brasil vença e ganhe." (Dunga, em entrevista ao programa Terceiro Tempo)

"Eu, o Paulo Nunes e o Dinho vamos fazer uma dupla sertaneja." (Jardel, ex-atacante do Grêmio)

"O novo apelido do Aloísio é CB, Sangue Bom." (Souza, meio-campo do São Paulo, em uma entrevista ao Jogo Duro)

"A partir de agora o meu coração só tem uma cor: rubro-negro." (Fabão, zagueiro, assim que chegou no Flamengo)

"Eu peguei a bola no meio de campo e fui fondo, fui fondo, fui fondo e chutei pro gol..." (Jardel, ex- jogador do Vasco e Grêmio, ao relatar ao repórter o gol que tinha feito)

"A bola foi indo, indo, indo... e iu!" (Nunes, jogador do Flamengo da década de 80 - ou Paulo Nunes, que atuou no Fla no início da década de 90)

"Tenho o maior orgulho de jogar na terra onde Cristo nasceu." (Claudiomiro, ex-meia do Inter de Porto Alegre, ao chegar em Belém do Pará para disputar uma partida contra o Paysandu, pelo Brasileirão de 72)

"Nem que eu tivesse dois pulmões eu alcançava essa bola." (Bradock, amigo de Romário, reclamando de um passe longo)

"No México que é bom. Lá a gente recebe semanalmente de 15 em 15 dias." (Ferreira, ex-ponta esquerda do Santos )

"Quando o jogo está a mil, minha naftalina sobe." (Jardel, ex-atacante do Vasco, Grêmio e da Seleção)

"O meu clube estava à beira do precipício, mas tomou a decisão correta, deu um passo à frente."
(João Pinto, jogador do Benfica de Portugal)

"Na Bahia é todo mundo muito simpático. É um povo muito hospitalar." (Zanata, baiano, ex-lateral do Fluminense, ao comentar sobre a hospitalidade do povo baiano)

"Jogador tem que ser completo como o pato, que é um bicho aquático e gramático." (Vicente Matheus, eterno presidente do Corinthians)

"O difícil, como vocês sabem, não é fácil." (Vicente Matheus)

"Haja o que hajar, o Corinthians vai ser campeão." (Vicente Matheus)

"O Sócrates é invendável, inegociável e imprestável." (Vicente Matheus, ao recusar a oferta dos franceses)

"A moto vou guardar pra mim e o rádio vou dar pra minha avó." (Biro Biro, ex-jogador do Corinthians - ou Josimar, ex-lateral do Botafogo - ao ser perguntado por um repórter o que iria fazer com o Motorádio que ganhou como prêmio de melhor jogador de uma partida)

"Comigo ou sem migo meu time vai ganhar." (Fio Maravilha, ex-jogador do Flamengo)

"Apresento a vocês nosso novo atacante, o Lero Lero. Hein? É Biro Biro? Ah...Lero Lero, Biro Biro, é tudo a mesma coisa!" (Vicente Matheus, ex-presidente do Corinthians, ao apresentar o jogador Lero Lero, digo...)

"Quero dar as boas-vindas a nosso novo técnico, Paulo César Carcejano...Carcejani...Carcejana..." (Alberto Dualib, ex-presidente do Corinthians, tentando apresentar o treinador Paulo César "Carpegiani")

"Fingi que fui, não fui, mas acabei fondo." (Jairzinho, ex-atacante do Botafogo e da Seleção, explicando como deu um elástico em um adversário)

"Tô muito feliz de ter feito esse gol, muito agradecido por essa torcida, e quero mandar um abraço a todos porque hoje é dia das mãe..." (Desconhecido jogador do América comemorando vitória por 1 a 0, gol dele, no dia das mães)

"Clássico é clássico e vice-versa." (Jardel, ex-atacante do Grêmio, Vasco e Seleção)

“Jogador é o Didi, que joga como quem chupa laranja…” (Neném Prancha, ex-roupeiro do Botafogo, ex-técnico de futebol de praia e filósofo da bola)

"Jair Pereira vai sair. Acabei de receber uma telefonema dos Emigrados Árabes..." (Antigo dirigente do América, revelando a "Emigrada" do treinador)

Monday, July 13, 2009

Ela nem sabe...

Ah...ela é tão linda...tão meiga...tão bonita...

Mas nem sabe que eu existo.

Todos os dias passo por ela, a vejo. Paro, fico olhando, assim, meio como quem não quer nada, mas...pensa que adianta?
Que nada, ela continua lá, na dela, como se nada tivesse acontecido. Nem me nota, nem nada. Não fala, não diz, não responde, finge que não é com ela. Ah, como dói, apenas ficar olhando...

Ah, se eu tivesse uma chance de conversar com ela, dizer alguma coisa ou coisa nenhuma. Se ela pudesse me ler agora...ou me ver agora, quem sabe...eu diria tudo. Diria que foi uma coisa assim, de olhar e gamar, sabe?

Daquelas que a gente passa a vida toda rejeitando, e quando acontece, fica com cara de bobo. Do tipo de rir sozinho, de ficar feliz por motivo algum, e de se sentir motivado do nada, por coisa alguma.

Isto é, quando acontece, né? Por enquanto...continuo só olhando. Só vendo. Só sonhando.

E ela na dela, como se nada tivesse acontecido. Não vê, não fala, não responde, nada, finge que nem me vê.

Será que de perto ela é tão bonita quanto na foto?

Wednesday, July 01, 2009

A pergunta que não quer calar

A "onda" passou, de certa forma perdi o bonde da história, mas a pergunta ficou no ar.

Basta tocar no assunto que ela surge, assim, como quem não quer nada.
Lembra o enigma de Dom Casmurro, mas está mais para o mistério que envolve a morte de Quincas Berro D´Água, onde se supõe a verdade com base nos indícios, mas nada daquilo tem como ser provado. Bem ao contrário do enigma machadiano, tão perfeito (ou quase) que a dúvida permanece.

Afinal, Wilson Simonal mandou bater ou não em seu contador? E a essa pergunta se soma outra, menos dita: teria realmente o contador roubado o dinheiro do cantor?

A discussão se tornará eterna, visto que Simonal morreu e ninguém envolvido no episódio, exceto o próprio contador, apareceu para dar sua versão. E sem versões, há poucas chances de construir os fatos. Estaríamos sendo parciais demais, a um ponto de transformar em fato a visão de um lado da história.

Fato é que essa história gerou uma reação em cadeia que ninguém esperava, e que culminou com o esquecimento total e absoluto de Simonal, um raro talento musical, talvez o maior cantor brasileiro (autêntico) de todos os tempos.

Fica a pergunta no ar...para ser pensada, discutida, após um filme que deve ser visto por todos aqueles que apreciam música e cultura. A essa altura, já deve estar fora dos cinemas, mas...viva o DVD.

Afinal, Wilson Simonal traiu ou não?

Bem, não era bem essa a pergunta, mas...vocês entenderam.

Tuesday, June 30, 2009

O sonhador e "o não"

Meteu a mão no bolso, puxou fundo, afastou a carteira e tirou a chave.

Suspirou, limpou as lágrimas do rosto, fungou e meteu a chave na fechadura. Não, não o veriam chorando. Não podiam, simplesmente era algo constrangedor, exagerado, forte demais.

O choro escondia a decepção, a frustração e a desilusão, após uma certeza que o inundara com uma força tremenda durante tantas semanas.

Mas, mais do que isso, lhe perguntariam o porquê. Iam querer saber detalhes, dar conselhos, fazer comentários.

Comentários...isso era tudo o que ele não precisava naquele momento. Sua única vontade era pensar, ficar sozinho, raciocinar. Ele próprio não estava entendendo o motivo de tamanho choro. Afinal...ela dissera apenas "não". Simples assim...

Precisava pensar. Mas, antes de pensar, precisava abrir a porta, entrar em casa. Não podia ficar parado no corredor tentando controlar o choro.

Entrou. A velocidade dos passos estava acima do normal, é verdade, mas depois ele contaria que disfarçou bem. Mas era difícil continuar disfarçando em uma casa com quatro pessoas, então a saída era o chuveiro.

A reflexão não ajudou. Não conseguia pensar direito, o barulho da água caindo o distraía. Deixou as lágrimas rolarem. "Por quê?", se perguntava. "Mais uma vez...por quê? O que de mais está errado?".

Não achou a resposta, e depois achou que não havia nenhuma. Mas decidira conversar com alguém, dividir as angústias, os problemas, já que sozinho não era possível.

E decidiu conversar...

***

A chuva já havia passado, agora restava apenas a rua molhada. No corpo, levava sua velha capa de chuva (que a mãe ironizava, dizendo que estava grande e que parecia "do irmão mais velho") e, nas mãos, carregava um guarda-chuva automático, fechado.

No rosto, a expressão era dura, irritada, furiosa. A mesma que quase fora de choro há pouco mais de dez minutos. "Por quê?", dizia de si para si, enquanto descia a Rua Lopes Quintas. "Por que me mandou ir até lá? Não podia me dizer tudo pelo telefone? Me fez subir para dizer que eu deveria descer e ficar por aqui? Quem pensa que é, para me tratar desse jeito? E ainda me deu este telefone aqui. Vou jogar esta porra no lixo, não quero nem saber. Vá à merda, esteja onde estiver".

Irritado, ele chutava pedrinhas, andava com o passo duro, embrutecido. A raiva escondia a decepção, a frustração após uma certeza que o inundara com uma força tremenda durante as últimas semanas.

Não sabia quando a raiva passaria, mas não desistiu. Ainda irritado, lembrou que a esperança se renovaria no dia seguinte. "Desta vez...vou colocar as cartas na mesa."

***

Olhou no "horizonte" da rua, viu o ônibus e fez sinal. O coletivo parou, ele entrou. Vestia camisa social, calça jeans, sapato. Depois de passar o cartão na roleta, se sentou, tirou o MP3 do bolso, ligou e começou a ouvir.

Uma da tarde. Estava adiantado...melhor assim, pensou.

Distraído, ouvia música enquanto pensava no dia de trabalho que teria pela frente.

Foi então que surgiu a idéia. Veio rápida como um raio, atravessando a mente sem pedir licença - aliás, isso andava acontecendo bastante ultimamente.

Começou a se lembrar de quanta coisa conquistara nos últimos tempos. A começar pela música que ouvia. Listando mentalmente, percebeu quantas coisas boas haviam acontecido.

E se lembrou de que isso começara em algum ponto. Sim...como pudera esquecer?

No dia em que ela disse "não".

"Ah, se eu pudesse dizer isso a ela. Não...não lhe daria esse gostinho. Que bom que é melhor do jeito que é."

Sorriu e aumentou o volume da música enquanto o ônibus entrava no Túnel Rebouças.

Thursday, June 25, 2009

Fevereiro

Às vezes acho que já li isso em algum lugar. Teria sido em um poema de Drummond ou num texto de Paulo Mendes Campos? Ou em uma música de Vinícius, Tom e/ou Elis Regina?


Não sei, não importa. Mas sei que fevereiro é a cara do Rio.


Tem mês mais carioca que fevereiro? Ah, não tenho dúvida que não.


Fevereiro é mês quente, mês de calor, auge do verão. Não tem pra dezembro nem janeiro, muito menos março.

Mas é um verão, assim, que é bem verão mesmo. Os dias de fevereiro parecem mais quentes que os outros. Antes dele, o verão parece que ainda está começando, e quando fevereiro acaba, o verão vai indo embora...como diria a Elis, são as tais “águas de março" fechando o verão. Nada mais sábio.


Pensar em fevereiro me lembra praia, mas aquela praia com solzão, sol à pino mesmo, de nove da manhã às seis da tarde, com um calor de rachar e onde não bate um ventinho sequer, com meninas de biquíni estiradas na areia, de bunda para cima, pessoas jogando vôlei e futebol, crianças comendo queijo coalho e sanduíche natural, surfistas esbarrando em mulheres histéricas. E nada de bater um vento pra aliviar.


Fevereiro não tem o ar chuvoso de dezembro e janeiro e nem os dias um pouco menos quentes de março. Não tem dias nublados “clássicos”, daqueles em que o sol não dá as caras; no máximo tem um dia “meio-lá-meio cá”.

Fevereiro também é um mês engraçado porque faz sempre calor. Pode chover, cair um verdadeiro temporal, que a gente continua sentindo calor.


Fevereiro também me lembra os dias cariocas mais quentes, às vezes quase insuportáveis, em que é preciso tomar banho cinco vezes para não ter a sensação de que se está derretendo.


E como falar de Fevereiro sem falar das meninas com pouca roupa, que tiram a atenção, fazem a gente quase bater no poste ao virar para olhar para trás...vão andando devagar, naquele jeito que só elas sabem, dominando, escravizando nosso pobre (ou seria rico?) olhar...ah, às vezes o calor é tão generoso, não é mesmo?


E por mais que elas andem assim em todo o verão (e algumas vezes, o ano todo), parece que em fevereiro fica mais fácil reparar. Sabe aquela história “tá um calor aqui...”? Pois é...


E como falar desse mês sem lembrar que parece um mês de volta de férias, mesmo que não seja? É o tempo em que nos damos conta que o ano está começando de fato, que janeiro já ficou para trás, e que vem aquele engraçadinho dizer “ih, o ano tá voando!”.


Quando lembro de fevereiro, também lembro do anoitecer do centro do Rio, da Avenida Rio Branco, ali perto do edifício Avenida Central, aquela noite que cai devagar, aos poucos, com o sol descendo e as pessoas apressadas voltando para casa. É só um dia normal, mas em fevereiro...parece especial, não sei.


Claro que fevereiro é especial também por juntar algumas das maiores paixões cariocas: futebol, praia e carnaval. É a época em que o Campeonato Estadual de futebol floresce, época dos blocos de rua (já foi dos bailes...) que estão se estendendo e começando a tomar o mês todo, é a época do Carnaval...


Carnaval que é mais que aquele desfile na Sapucaí ou aqueles quatro dias de folia, é um estado de espírito, é um momento, um pedaço da vida, que vai sendo colado aos poucos com os outros que vão sendo vividos a cada ano. Para depois dizer: “Ah, tenho ótimas lembranças do Carnaval”, como se tivesse sido um só tempo, uma só época...


E nem me venham falar em Carnaval em março, porque como já disse, é estado de espírito, e isso não tem data.

Aliás, tem: fevereiro. Que, por sinal, é muito mais que um mês.


É um estado de espírito.


Junto com o Carnaval e a Praia, o mais carioca de todos os estados de espírito.

Thursday, April 09, 2009

Qual é o crime?

Outro dia, na Auto Escola, o professor da aula teórica estava revoltado com o código de trânsito, com as leis do país, com a situação da violência e com as mortes no trânsito. Enfim, com tudo e mais um pouco. "Isso que estamos vivendo é o país da sacanagem. O próximo passo vai ser criminalizar a honestidade".

Que bobagem, pensei. Isso jamais aconteceria.

Chegando em casa, minha mãe fazia imposto de renda, e discutia com a minha tia formas de burlar o fisco. "Então não declaro isso tudo...o que você acha? Será que me pegam na malha fina?".

Depois que minha tia se afastou, comentei numa boa: "Mãe, não faz isso, você sabe que é errado". Para que... "Ah, você não entende, você não sabe de nada, não sabe o que é ter despesa, e pagar dinheiro ao governo para eles nos roubarem".

Ao sair do quarto, ouvi ela dizendo à minha tia para comprar um bolinho e levar à enfermeira da vovó no hospital. "Tá vendo, mãe? Depois você fala dos políticos. Tá fazendo igualzinho. Isso é corrupção, é suborno. Vovó tem que ser bem tratada naturalmente". "O que é, filho? Virou bastião da honra e defensor da moral? Não é corrupção, é só um agrado, não tem nada de mais".

Fui trabalhar, e na volta, peguei carona com meu chefe. Cansou de ultrapassar pela direita e não dar passagem a ninguém. E ainda se irritou quando eu quis guardar um papel de bala no bolso. "Joga fora pela janela, porra. Depois o gari limpa". Não adiantou argumentar, ele estava irredutível e me forçou a atirar o papel fora.

No caminho, ele foi parado por um guarda. Estava com o documento vencido, e o policial exigiu uma "cerveja" para liberar o carro. "Tem algum aí? Depois eu te dou", ele me disse.

"Não vou dar dinheiro para subornar guarda, porra. Você está errado, tem que pagar, apenas isso."

Para que...me olhou de cara feia o resto do caminho. Ele e o guarda, que acabou aceitando liberar o carro sem cerveja nem nada.

No dia seguinte, fui fazer uma matéria, e na volta, conversava sobre desonestidade com o motorista do jornal. "Pois é, esses deputados, senadores, vereadores...tudo envolvido em esquema, tudo safado, ninguém presta", dizia ele.

"Pois é. E o pior é que a maioria das pessoas reclama muito, mas se estivesse lá, fazia igual".

Ele ficou calado, e depois de alguns instantes, mandou na lata... "É...se eu estivesse lá...eu também faria esquema, ué. Ia arrumar o meu. Todo mundo faz, porque eu não vou fazer?".

Dizer o que? Fiquei calado. O exemplo estava mais do que dado.

O professor estava certíssimo...exceto por um detalhe.

Não é preciso uma lei para criminalizar a honestidade no país.

Ela já virou delito hediondo há tempos.

Friday, February 20, 2009

Sonho ou Utopia, Absoluto ou Relativo?

Uma noite eu tive um sonho.

Sonhei que estava acordando para ir trabalhar, e que era um belo dia de sol. Depois de tomar café, eu pegava um jornal e começava a ler.

Lia que a taxa de homicídios no Rio havia caído pela metade em um ano, com dados de um instituto sério e independente, sem ligação com as autoridades. E o de roubos estava em queda há dois anos.

Na parte política, a principal notícia era sobre corrupção. Políticos andavam com medo de suas tramóias serem descobertas, e evitavam a imprensa, pois vários colegas já haviam ido para a cadeia, e outros, perdido todos os seus bens, com uma série de sanções à própria vida, obrigados a depender do serviço público, depois de comprovadas as acusações.

E que o governo anunciava novo recorde de empregos, reiterando a necessidade de trazer estrangeiros, o que já gerava reclamações por parte da população.

Na seção de Esportes, havia notícias dizendo que o Flamengo estava conseguindo pagar suas dívidas, que Fluminense e Vasco não brigavam mais, que o Botafogo não se remoía mais por suas derrotas, que os quatro grandes do futebol Carioca brigavam pelo título nacional. E que os outros esportes estavam crescendo. Éramos campeões mundiais de vôlei, basquete, handebol, natação, ginástica, vela, iatismo, entre outros, e apontados como a maior potência olímpica da história, graças a um belíssimo projeto social esportivo.

Depois de tomar café, eu ia para a praia. O mar era de um azul-brilhante sem fim, sem poluição. E tampouco havia cachorros na areia. Em vez deles, tínhamos turistas, de todas as partes do mundo, admirando a beleza e a tranquilidade do verão carioca, a amabilidade do povo, o jeito caloroso com que os cariocas recebem e tratam as pessoas.

Depois de dar uma volta por aí, respirando o ar mais puro da tranquilidade - não absoluta, mas relativa - voltava para casa para almoçar, e ia trabalhar.

Em vez de ônibus sujos, quentes e fedidos, com gente quase caindo do lado de fora a cada freada, eu ia de metrô. Um metrô como é hoje, sério e organizado, mas com mais de dez linhas, ligando cada canto da cidade. Sem falar em barcas, trem suspenso, ônibus em corredores exclusivos. Mas, como nada era perfeito, tinha muita gente reclamando dos altos preços das passagens.

E descendo da estação em direção ao trabalho, podia andar com calma. Atento, sempre - nunca se sabe o que se encontra na rua - mas tranquilo. Enquanto isso, um grupo de policiais levava para a delegacia um menor que tentara roubar a carteira de uma senhora.

Uma paz, uma paz não absoluta, mas relativa, que me permitia pensar apenas nos problemas do trabalho, no que ia fazer à noite, em como gastar o dinheiro que sobrava no fim do mês.

Mas, como nada era perfeito...

Acordei e percebi que era apenas um sonho. Não um sonho absoluto...mas...relativo. Será que não era melhor ter continuado dormindo?