Friday, October 31, 2008

O conto do prédio

Veio andando calmamente pela rua, camiseta, calça jeans, mãos nos bolsos, um cigarro aceso na boca. Parou em frente àquela lanchonete na última fronteira da Rua Voluntários da Pátria - onde de um lado é Botafogo, do outro é Flamengo - e deu uma última baforada.

Era uma bonita tarde de sol de uma quinta-feira qualquer, dessas que a gente nem se dá conta que existiram algum dia. Deviam ser umas seis e pouco. Com o horário de verão, nem dava para notar que já era noite.

Após terminar de fumar, o rapaz jogou o cigarro fora e entrou na lanchonete. Estava quase vazia: um homem tomava um suco, em pé, e outro comia um sanduíche, sentado no balcão. O jovem se aproximou do balcão e pediu:

- Me dá um suco, por favor?
- Claro...aquele velho suco de manga, hã?
- Não, acho que hoje vou variar um pouco. Me dá um de maracujá.

O balconista - já um senhor, com chumaços de cabelo apenas nas laterais da cabeça, boina azul-clara enfiada na careca e uniforme azul-claro - olhou o rapaz desconfiado.

- Tem certeza?
- Absoluta.
- SAI UM MARACUJÁ NO CAPRICHO!!! - berrou o balconista para o interior da lanchonete.

O rapaz era um velho freguês, que todo dia passava por ali. Entrava assim, sempre depois de fumar, e pedia um suco, sempre de manga. Depois, bebia olhando para um centro empresarial em frente à lanchonete, como se estivesse esperando alguém ou querendo ver alguma coisa. Ficava por ali algum tempo, às vezes uma hora, depois pagava e ia embora. Nunca comia nem bebia nada, e não falava nada além de "me dá um suco de manga".

Sua presença já era tão comum que os funcionários da casa já falavam dele, aos cochichos. Alguns tinham a teoria de que esperava por uma noiva, mulher ou namorada (alguns achavam que era um namoradO), e quando a via sair, ia a seu encontro.

Alguns achavam que era um assaltante que pretendia roubar o prédio, e por isso ficava só observando. Outros ainda afirmavam que era muito longe para um ladrão observar um prédio, e o rapaz não usava nenhum binóculo.

Ao entregar o suco, o balconista perguntou:

- Mudou hoje?
- Pois é, não é...
- Mas porque a mudança?
- Achou estranho?
- É.
- Bem, não suportava mais beber suco de manga todo dia.

O balconista riu. Sem conseguir se conter - era a primeira vez que estabelecia um diálogo com "o jovem do suco de manga" - continuou puxando papo:

- Você...todo dia vem aqui, pede um suco e fica olhando para o prédio. Por quê?
- Bem, preferia não dizer.
- Claro...é que...bem...as pessoas falam muitas coisas, sabia? Muitas teorias a seu respeito...os funcionários, os freqüentadores...

O rapaz deu uma risada.

- É sério?
- Claro. Várias teorias, das mais absurdas, sobre porque você fica olhando esse prédio. Você riria se soubesse de algumas. E talvez ficasse chateado com outras.
- Que coisa engraçada...e bizarra, também.
- Pois é...e sabe, não nos aguentamos mais de curiosidade!
- A curiosidade matou o gato - disse o rapaz, sério, terminando o suco e pegando um maço de cigarros no bolso da calça. - Mas já que você insiste...bem, eu adoro aquele prédio.
- Como? Gosta do prédio?
- É, eu adoro. Gosto dele. Sei lá, tem algo que me fascina. Na verdade, todo esse ponto onde estamos. Não sei explicar, sabe? Aí recentemente perdi o emprego, não tinha o que fazer em casa...então venho passear às tardes, espairecer, tomar um suco e olhar o prédio. Acho legal. Acabou virando um hábito.

O balconista olhava o rapaz, perplexo. Então era isso. Bem, realmente uma coisa daquelas ninguém ia imaginar.

- Pois posso lhe ajudar.
- É sério?
- Claro. Eu conheço o porteiro daquele edifício. E ele poderia levar você para conhecê-lo.
- Puxa...que legal! E onde ele está?

O balconista sorriu e apontou para o homem que comia um sanduíche no balcão, e que também havia parado para ouvir a história.

- Deixe eu acabar de comer, que levo você lá - disse o porteiro.

Saíram os dois, atravessaram a rua e entraram no prédio. Conheceram tudo, todos os andares, locais, empresas que funcionavam ali, cada canto, cada curiosidade, a belíssima vista da Baía de Guanabara. Então desceram.

- E aí, o que achou? - perguntou o porteiro.
- É legal. Mas por dentro é como outro prédio qualquer. Por fora é bem mais bonito e interessante.
- Como assim?
- Vamos ali na lanchonete, que eu te mostro.

E os dois voltaram ao bar e ficaram ali, olhando...

- Sabe que você tem razão? - disse o porteiro, sorrindo. - Nunca tinha reparado como é bonito, esses vidros, esses mármores, nesse lugar, a Baía de Guanabara ao fundo, esse pedaço de céu que aparece, o encaixe perfeito com a saída do viaduto, o vento fresco batendo...sem todas aquelas pessoas, sem trabalho, nada, só o tempo passando. Lindo mesmo, cara.

E agora, todas as tardes, quem passa por aquela lanchonete percebe dois homens com um copo de suco na mão, olhando para um prédio...

Monday, October 13, 2008

Pitacos sobre as eleições no Rio

Ninguém fala especificamente de eleições do Rio. Acabei de passar pelo Globo Online, jornal carioca, e tem mais manchetes sobre São Paulo do que sobre a Cidade Maravilhosa. A Folha, sendo jornal paulista, menos ainda. Estadão, tampouco. Se ninguém fala, falamos nós.

Para começar, uns pitacos sobre o segundo turno.

- Gabeira vacilou, e imagino que saiba disso. O adversário estava doido para dividir a cidade, e a frase sobre a vereadora Lucinha caiu como uma luva. Pronto, começou de novo aquela história Zona Sul x Subúrbio. Pode não fazer a diferença, mas, ao mesmo tempo, pode fazer MUITA diferença.

- Paes não tem moral nenhuma para falar de subúrbio, muito menos dizer que é suburbano, pois é filho de família rica da Zona Sul e nunca deve ter ido à Penha antes. Também não tem moral para pedir apoio a Lula, a quem chamou de "chefe de quadrilha" há dois anos atrás.

- Jandira Feghali, do PCdoB (!!!!!) também não tem moral nenhuma para pedir apoio a Paes. Há um mês atrás, ela o acusou de "trocar de partido como quem troca de roupa". Ela falava de quem, mesmo?

- Para mim, Paes saiu-se ligeiramente melhor no debate da TV Bandeirantes. Nem tanto durante as trocas de acusações, quando ambos duelaram por igual. Mas na hora de apresentar as propostas, me pareceu um pouco mais claro e objetivo do que Gabeira, que divagou um pouco em alguns pontos.

- Fica aqui um repúdio à campanha suja, baixa e sem escrúpulos que alguns candidatos vêm fazendo, não só no Rio mas também em outros estados. Panfletinhos com acusações imbecis, insinuações à homossexualidade do adversário, camisetas tentando dividir (ainda mais) a cidade. Esse comportamento não é nada condizente com quem se diz preparado para governar uma cidade.

Thursday, October 02, 2008

O concurso

Quando o Santiago entrou no escritório e foi em direção à mesa do Fontoura, que era seu chefe, este suspirou fundo. Ia começar tudo de novo.

- Bom-dia, chefe!
- O que é que você quer, Santiago? - perguntou o Fontoura, sem tirar os olhos da tela do computador.
- Puxa...nem pra me dar bom-dia!
- Você nunca me dá bom-dia, Santiago. É sempre um "oi" discreto. Quando cumprimenta assim, todo simpático, é porque quer alguma coisa.
- Quebra essa pra mim, chefe.
- De novo essa conversa, Santiago? Já falei que não!
- Por favor...
- Não, não e não. Agora anda, vai trabalhar e não me atrapalha.
- Mas chefinho...
- Chefinho é a tua mãe, Santiago. Olha aqui, hoje é sexta e você tem muito o que fazer. Então anda logo, vai pra tua mesa e começa a trabalhar, senão as coisas vão complicar. E nem ouse falar nada com a Roberta, hein?

O Santiago andava insuportável. Desde o início daquela semana, torrava a paciência de todos no escritório para não ter que trabalhar naquele fim-de-semana. Contava ele - nem todos acreditavam - que tinha que visitar o pai em Valença, porque o velho, de 80 anos, estava muito doente e ia morrer.

Para ir ver o "papai", ele fez de tudo: tentou trocar o fim-de-semana, fingiu que estava doente, pediu para não trabalhar, inventou que tinha quebrado a perna, depois o braço...

A Roberta, que trabalhava no fim-de-semana após o do Santiago, era a vítima preferida dele. Todos os dias ele encostava na mesa dela e começava a conversar. No início ela adorou, pois o achava bonito, mas quando percebeu que Santiago apenas queria trocar o fim-de-semana, passou a nem olhar na cara dele.

Depois de voltar da mesa do Fontoura, na sexta-feira, o Santiago chegou a dar uma meia-trava perto da mesa da Roberta...

- Nem vem.
- Por favor...
- Não quero saber.
- Mas...
- Não, não e não.
- Mas Rô...
- Não me chama de Rô, não me chama de Rô, você sabe que eu odeio!
- Mas Beta...
- Também não me chama de Beta, eu também odeio!
- Mas...
- Não me chama, não, tá, Santiago? Agora sai daqui antes que o chefe te esfole vivo.

Sem alternativa, ele voltou para a mesa. Seu tempo estava se acabando, tinha que pensar. Não podia trabalhar naquele fim-de-semana de jeito nenhum. Decidiu tentar o Fontoura de novo.

- Fontoura...
- De novo, Santiago? Olha aqui...preciso ter uma conversa séria com você.
- Diga.
- Não, não...venha comigo. Aqui não. Vamos fumar um cigarro.

O Fontoura saiu do escritório, com o Santiago atrás. Pegaram o elevador e desceram, o Santiago sem muita coragem de encarar o chefe. 'Vou ser demitido. Agora acabou-se tudo', disse para si mesmo.

Depois de sair do elevador, o Fontoura seguiu até a portaria do prédio, onde encostou do lado de fora e acendeu um cigarro. Deu uma baforada, e sem tirar os olhos do trânsito, disse...

- Santiago, me diz a verdade.
- Como?
- Se você me disser a verdade, ou seja, porque você não quer - ou não pode - trabalhar nesse fim-de-semana, dou um jeito no seu caso.
- Jeito como?
- Um jeito. Boto alguém de outro setor. Digo que você ficou realmente doente. Não interessa.
- Mas o meu pai...
- Não, Santiago, não. Essa desculpa não cola comigo. Você tem algum compromisso que considera inadiável. Ninguém força as coisas desse jeito exagerado como você está fazendo. Aliás, nunca faça isso. Soa ridículo.
- Sim, chefinho.
- E chefinho é a tua mãe - disse Fontoura, com ar irônico.
- Tá bom, eu falo. É...é...como dizer...
- Falando.
- Bem...eu...
- Você...
- É...um concurso público, é isso - disse Santiago, baixinho.
- Um concurso?
- Sim. Uma prova. A segunda etapa de um concurso público. A prova é domingo de manhã e por isso não terei como vir...e estar lá ao mesmo tempo.
- Um concurso, hã?
- Sim...para Furnas. Esse ano é em duas etapas.

O Fontoura ficou em silêncio por um instante, enquanto deu mais uma baforada no cigarro.

- Não precisava nada disso.
- Mas chefe...
- Você podia ter me dito em particular.
- Mas o senhor não ia me demitir?
- Demitir não...só não ia permitir que você fosse - e deu uma risadinha irônica.
- Então!
- Olha aqui, Santiago, era melhor você ter dito logo e pedido uma folga do que ficar inventando desculpas. Mesmo que eu não liberasse, não ia te demitir por querer fazer a prova. Todos tem direito de querer melhorar de vida.
- É...
- Então agora sossega e volta ao trabalho.
- Então posso folgar domingo, chefinho?
- Não - e deu uma risada. - Pode, sim, eu te prometi.
- Obrigado, chefe!
- De nada. E ah, mais uma coisa.
- Qual?
- Chefinho é a tua mãe.

***

No domingo, o Santiago chegou cedo ao local da prova, em uma faculdade particular na Praça XI. Cartão de confirmação e um estojo - com quinze canetas e doze lápis, para o caso de falhas - na mão, ele entrou na fila que levava ao prédio onde faria a prova.
Subiu de elevador, foi procurando até chegar à sala 706, e então entrou.

Depois de assinar a lista, começou a procurar um lugar. Estava cheio e só achou uma carteira livre, no fundo da sala. Ao lado estava um homem abaixado, amarrando o sapato.

- Ei, senhor - disse o Santiago, cutucando o homem - este lugar está livre?
- Está s...
- Não...não pode ser...FONTOURA?
- Santiago?!

Pedidos de silêncio vieram de todos os cantos da sala. Envergonhado, Santiago ficou ali, paralisado, sem saber o que fazer. O chefe o fez se sentar na cadeira vazia. Visivelmente constrangidos, os dois não disseram mais nada.

Terminaram a prova quase juntos. No corredor, Fontoura acelerou o passo e Santiago teve que correr para acompanhá-lo.

- Chefinho...
- Não diga nada, Santiago.
- Mas chefinho...

Irritado, Fontoura o segurou pelo braço e o encostou na parede.

- Olha aqui, chega, tá? Não precisa dizer mais nada. Nem aqui nem na empresa. Eu não falo nada sobre você e nem você sobre mim.
- Pensei que o senhor fosse guardar segredo mesmo...
- Era a idéia. Mas - abaixou ainda mais o tom de voz - não esperava que você fosse fazer a prova no mesmo lugar que eu, muito mais sentar do meu lado! Então se você falar sobre mim, não terei escolha!
- Eu...eu...
- Santiago, vamos ficar assim, tá? O assunto morre aqui.
- Tá.

Soltou o empregado e começou a andar. Dali a pouco parou e virou para trás.

- Mais uma coisa.
- O que?
- Chefinho é a tua mãe.