Thursday, December 30, 2004

Há confusões que vêm...pela porta

São oito e meia da manhã de um feriado. O sujeito está sentado em uma poltrona, com os pés apoiados numa banquetinha, lendo o jornal do dia, esperando por um decorador que virá dar sugestões para arrumar a casa. A campainha toca, e quando o sujeito vai abrir, se surpreende com uma mulher.
— Bom dia — diz a mulher. — Espero ter chegado na hora...
— É, chegou até antes — diz o dono da casa, ainda com a porta entreaberta. — Pensei ter marcado nove horas...
— Pois comigo o senhor marcou oito e meia — diz a mulher, apressadamente.
— Não, quanto a isso, sem problema — diz o sujeito, abrindo a porta. — Mas eu jurava que quem viria seria um homem...
A mulher o olha com uma cara de interrogação.
— Algum problema? Porque se houver...
— Não, não, me desculpe — diz o dono da casa. — Entre, entre...
A mulher entra, observando a casa.
— E então, o que acha? — diz o homem.
— Acho do que?
— Da casa.
— Ah, sim, é bem grande — diz ela. — Deve dar um trabalhão pra limpar...
— De fato — diz o dono. — Um dia só para limpar...e ainda assim, é insuficiente. Mas vamos direto ao ponto?
— Vamos.
— Tá.
— Sim.
— E então?
— Então o que?
O homem parece perder um pouco da sua preciosa paciência.
— Diga logo.
— Dizer o que, senhor? O senhor é que tem que me dizer.
— Eu não, eu vou te pagar pra você dizer!
— Pra eu dizer? Pra eu dizer o que? O que o senhor quer que eu diga?
— O que você veio aqui dizer!
— E o que foi?
— Ora, como é que eu vou dizer, se quem tem que dizer é você?
— E como eu vou dizer, se o senhor não me perguntar o que quer que eu diga?
— E como EU vou dizer, se você não me disser o que tem que dizer?
— E como eu vou dizer, se o senhor não me dizer o que quer dizer quando diz que eu tenho que dizer?
— Ai...dai-me paciência! Olha, eu tô pagando muito, muito caro, pra você me dizer, ok? Sendo assim, diga logo, meu tempo é muito precioso!
— Mas o que o senhor quer que eu diga?!
— O que acha.
— Acho do que?
— Ora, da casa!
— Já disse, é muito grande.
— Mas, você gosta?
— Ah, sim, claro, é muito bonita.
— Mas, não acha que precisa mudar nada? Vamos, venha por aqui, ainda não te mostrei os outros cômodos! Os móveis...será que não precisa mudar um móvel, ou outro?
— O senhor tem filho?
O homem fica sem graça com a pergunta.
— Tenho, mas...
— Ah, então “ranca” tudo fora! Móvel é tudo ruim!
— Acha mesmo que os móveis são ruins?
— Ih, horrível. Principalmente com criança, sabe? Elas quebram tudo, ficam pulando, é péssimo. Eu, por exemplo...
— Mas, e da qualidade?
— Qualidade?
— É...você me recomenda móveis de melhor qualidade?
— Hein? Móveis...qualidade...ah, sim, sim, claro, como não? Móvel ruim é péssimo vive dando problema! Eu, por exemplo, já desisti de ter móvel, sabe?
— Não tem móveis?!
— Não! Móvel é horrível, ta sempre quebrando, sempre dando dor de cabeça, sempre deixando a gente na mão!
— E como faz então, sem móveis?
— Ando de ônibus, ora! Baratinho, sem dor de cabeça, nem nada!
— Não, não é disso que estou falando — diz o dono da casa, sem paciência. — Eu não estou falando de AUTOmóveis, estou falando de MÓVEIS, desses que a gente tem dentro de casa, desses que servem para decorar!
— Decorar?
— É!
— Ora, eu sei lá se esses negócios servem pra decorar! A única coisa que eu decorava eram as lições da escola rural, sabe? E hoje em dia eu continuo decorando!
— As lições?
— Não, as tarefas que cada patrão me manda fazer!
— Patrão?
— É, patrão.
— Peraí, tem alguma coisa errada aqui. Você disse...patrão?
— Eu disse? Ah, claro, eu disse!
— Não, você não disse.
— Ora, mas como não disse, se o senhor acabou de perguntar dizendo como se eu tivesse dito?
— Ora, mas como pode ter dito, se você disse que não disse quando eu disse que você tinha dito?
— Não, senhor, eu não disse que não tinha dito, eu tava tentando me lembrar se eu tinha dito, porque o senhor me disse como se dissesse que eu tivesse dito!
— AH, JÁ CHEGA! Você disse patrão!
— Tá vendo como eu disse?
O homem sacode a cabeça negativamente.
— Enfim, você disse. Tá bom. Mas por acaso você tem patrão? Pensei que trabalhasse sozinha!
— Não, claro que não! Como eu vou trabalhar sozinha, sem o patrão pra abrir a porta e me dizer o que eu devo fazer?
— Peraí, tem algo errado. Você não é decoradora!
— Como não?
— Ah, então você é! Que alívio! Há quanto tempo você decora?
— Ué, desde que entrei pra escola! Já não disse que tenho que decorar tudinho?
— Não é nada disso! Estou falando de decoradora, de decorar!
— E tem alguma decoradora que não decore?
— Não! Ai! Não é nada disso! Quero dizer...se você não faz decoração de interiores!
— Interiores?
— É!
— Ah...claro que sim, como não? To sempre decorando! O interior da casa da Dona Cíntia, por exemplo, é lindo. Tem um sofá branco...
— Eu estou falando de decoração...de interiores...mas não essa! Decoração...de pessoas que...decoram interiores...que dão dicas de como melhorar a aparência do ambiente interno da casa!
— Olha, pra melhorar a aparência, doutor, não tem nada melhor do que uma boa limpeza, sabe? Fica lindo! Eu, com um espanador...
— Peraí, você não disse espanador, disse?
— Sim, eu disse.
— Não, você não pode ter dito!
— Ih, vai começar o disse que não disse, doutor? Puxa, o senhor gosta de dizer, hein? Bom, chega de conversa, eu quero saber quanto ganho.
— Espera aí. Você não é decoradora. Quero dizer...você não trabalha com decoração de interiores! Opa...antes que comece a dizer que não disse, o que você faz da vida?
— Eu? Eu sou empregada doméstica!
— Empregada?
— É!
O homem começa a rir.
— Não acredito...uma empregada doméstica! Me desculpe, acho que tudo isso não passou de um sério engano.
— Engano?
— É! Eu não preciso de uma empregada!
— Não? O senhor não é o Seu Jorge, do 609?
— Sim e não. Quero dizer, aqui é o 609, mas eu não sou o Seu Jorge! Meu nome é Rogério!
— Mas é daqui mesmo, ó — diz a mulher, mostrando o endereço.
Rogério pega o papel, olha-o por um instante e então dá uma gargalhada.
— O que é?
— Seu Jorge mora no 906. Acho que a senhora leu o número de cabeça para baixo...

Não sei se foi engraçado, ou se vocês riram em algum momento, mas gostaria que me dissessem o resultado desse texto em vocês no link laranja aí embaixo – se riram, gostaram, acharam sem graça, enfim. Aquele abraço!

Wednesday, December 22, 2004

Labirinto

Abro os olhos devagar.
Olho; no alto, o céu; ao meu redor, as paredes cor cinza-metálico, com inscrições estranhas em alguma língua mais esquisita ainda.
Por toda a parte, só o que eu vejo são portas. Abro umas e outras, encontrando diversos tipos de salas e quartos. Alguns são desertos, outros têm objetos demais, outros estão impecáveis. Alguns estão perfeitamente organizados, enquanto outros são a pura imagem da desordem, e outros ainda são caóticos – habitados por uma série de ordens superpostas, ou seja, uma bagunça onde é possível não ficar perdido.
Abro e fecho portas, sem encontrar. Algumas portas estão trancadas; outras, emperradas. Há buracos nas paredes, e sempre existe a opção de passar ou não por eles. Passo por alguns, evito outros.
Pelo local, só se vêem os corredores vazios, o som da minha própria voz ecoando. Não parece haver ninguém em um raio de centenas de quilômetros.
A procura dura segundos, minutos, horas, dias, noites, semanas, e daí além. Nada. Canso-me de tantas voltas em círculos, de tanta procura desenfreada. Estou cansado; minhas pernas doem. Eu durmo e acordo e estou sempre no mesmo lugar. Tenho a impressão de que estou ficando mais velho, me aproximando (ainda) devagar de chegar ao final da vida, e ainda não achei. Por ora me pergunto se acharei, algum dia. Chegarei eu ao final da minha pobre vida sem que tenha conseguido encontrar?
Onde estou eu mesmo?