Monday, February 27, 2006

Isto é...carnaval



Segunda-Feira de carnaval.

Explode coração
Na maior felicidade...
É lindo o meu Salgueiro
Contagiando e sacudindo essa cidade...

O samba é muito bom, daqueles que entraram para a história. É o último que foi cantado durante um desfile na Sapucaí e que todo mundo conhece.
Enquanto ele toca, uma massa de gente passou por baixo da janela, dançando, cantando, bebendo. Todos felizes, celebrando a alegria da vida: carnaval.
E ele ali em cima, sentado numa cadeira, olhando a janela e observando tudo isso, sem coragem de sambar junto, sem ter como descer e se juntar sozinho à essa massa de gente, e meio sem saber o que fazer, também. O batuque é de empolgar e deixar arrepiado, mas ele continua sentado no mesmo lugar.
Já não é a primeira vez que a banda passa, nem será a última. Ele se levanta, irritado, e procura um cômodo da casa em que o som não chegue. Talvez no banheiro, ou na área de serviço. Mas é impossível: aquela batucada é muito forte, e a casa parece respirar carnaval. Não há como escapar, não há outro jeito. Não há como não ouvir, e nem como descer.
Sem remédio, ele volta à cadeira e se senta, observando a banda passar lá embaixo. O som agora mudou um pouco...

O teu cabelo não nega mulata
Que tu és mulata da cor
O teu cabelo não nega mulata
Mulata eu quero o teu amor!


Que saudade do tempo das marchinhas – que nunca viveu. Mas deviam ser bons aqueles tempos, ah deviam sim. Que fazer? Eles não voltam mais.
Ficar parado ouvindo aquilo dá uma agonia tremenda. Hum. Ele então se lembra de um biscoito e de um copo de coca-cola. Comer e beber ajuda a aliviar a tensão.
Vai então à cozinha, pega um pacote de biscoito Maria, abre a geladeira, pega a garrafa de coca, e fecha o refrigerador.
Hum.
Levou a garrafa toda. Haja coca-cola para segurar a tensão.
Voltou para a cadeira, abriu o biscoito e começou a mastigá-lo nervosamente, enquanto virava a garrafa de coca em direção à boca.

Quem não chora não mama
Segura meu bem
Dá a chupeta...
Lugar quente é na cama
Ou então
No Bola Preta

Uma visão lá embaixo tirou sua concentração: uma menina bonita, cabelo até o queixo, saia e blusa muito justas. Enquanto seu olhar se desviava, a garrafa de coca continuou no mesmo caminho. O líquido escorreu por sua boca, queixo e peito, molhando-o todo, e fazendo com que acordasse.
Não havia mais ninguém lá embaixo. Nenhum som, nenhuma batida, nenhum barulho, nada. Tudo muito tranqüilo e silencioso. Ele ficou de pé e olhou lá para fora, sem entender nada.

Segunda-feira pós-carnaval.

Sunday, February 12, 2006

Mesmo não é igual, mas é muito diferentte

"O senhor me avisa quando iegarmos na Rua Joã...João Lira?"

A voz soou rouca e hispânica, e fez o trocador voltar os olhos da janela para a roleta. O trocador era um negro alto, sorriso não muito brilhante, corpulento, vestindo uniforme da Viação Vila Isabel. Quem perguntava era uma mulher bastante bonita, pra não dizer...hum...é...deixa pra lá. Era loira, alta, vestia uma blusa rosa com um decote "generoso", e uma calça branca colada ao corpo.

"Rua João Lira...me avissa?"

O trocador olhou para ela por alguns instantes, e então respondeu:

"Aviso...aviso...pode deixar."

"Si...obrigada."

A mulher já ia saindo, quando o cobrador disparou:

"Ei, moça..."

"Han?"

"Se tiver...mais alguma dúvida é só perguntar que a gente esclarece aí."

Ela pareceu ficar sem jeito com o comentário, e respondeu timidamente:

"Obrigada..."

O trocador voltou os olhos para o decote, e quando a moça se afastou, os mesmos olhos percorriam toda a extensão da bunda dela. Ele parecia um tanto deslumbrado.
Depois da curva, o 433 entrou na Avenida General San Martin. O trocador desceu de sua cadeira e foi se sentar ao lado da moça.

"Você é da Argentina?" perguntou ele.

"Não", respondeu a mulher. "Venessuela..."

"Ah..." fez ele. "E está há quanto tempo no Brasil?"

"Uns dois messes, mais ou menos..."

"Morava com seus pais na Venezuela?", arriscou ele, continuando o diálogo.

"Si..."

"E aqui no Brasil?"

"Aqui estou morando com algumas amigas..."

O trocador pareceu ligeiramente mais animado.

"Ah...e o que está achando do Brasil?"

"É muito diferentte, muito diferentte...o povo é muito diferentte...as pessoas são mais calorossas...os homens...também...tudo muito diferentte..."

"E você estuda, trabalha, faz o que?"

"Yo trabalho...com publicidadde...e vendas..."

"Hum...e gosta de carnaval?"

Agora foi ela que pareceu animada.

"Si, carnaval é uma festa muito alegre e bonita..."

"Ah...e você já pensou em desfilar?"

Ela pareceu rir.

"Desfilar? Em escola de samba? Não, nunca penssei..."

"Ah...porque se você quiser...se estiver a fim..." a voz do trocador mudava de tom agora, como se ele estivesse construindo as frases antes de dizer, e ele continuava "Vila Isabel?"

A última frase parecia uma tentativa de ganhar tempo.

"O que?"

"Já pensou em desfilar pela Vila Isabel?"

"Não..."

A voz dele mudou de tom bruscamente, ficando mais pausada.

"Se quiser...eu tenho um amigo...que tem uma ala na Vila Isabel...é, ele tem uma ala...sabe, uma ala?"

"Ala?"

Ele partiu logo para o ataque.


"Ala...parte da escola de samba...mas...você tem telefone? Aí eu podia te ligar pra combinar direitinho..."

Ela riu alto. A pessoa pode ser do Uzbequistão, mas o som da palavra "telefone" tem sempre uma segunda intenção muito clara.

"Não...não...eu não tenho..." agora era a voz dela que soava meio pausada e muito clara.

"Que pena...mas então, fica com o meu..."

O motorista deu um grito:

"JOÃO LIRA É A PRÓXIMA RUA!!!!"

Ela se levantou, ajeitou a calça, puxou a cordinha do ônibus e foi em direção à porta.

"Prazer em conhecer" disse o trocador, rindo.

"Tcchau", respondeu a moça, descendo do ônibus.


Assim que ela desceu, o trocador voltou para sua cadeira, e fez o comentário final para o motorista:

"Que gostosa! Nossa...já pensou se pego uma mulher dessa? Tô feito pro resto da vida!"

Se virou para o último passageiro ainda no ônibus, e mostrando todos os dentes num sorriso largo, disse:

"É ou não é?"