Saturday, November 27, 2004

O sonhador e o cotidiano

“Todo dia ela faz tudo sempre igual / Me sacode às seis horas da manhã / Me sorri um sorriso pontual / E me beija com a boca de hortelã...”

Os primeiros raios de sol atravessam a minha janela, passando pelas frestas da cortina; são seis e meia da manhã. Me viro de bruços, querendo dormir mais um pouco, e quando estou quase pegando no sono novamente, o despertador começa a tocar. Detesto alarme; coloquei uma música. Naquela manhã especialmente, acordei ouvindo “Hey Ya”, do grupo americano Outcast. Uma música ideal para despertar, sem dúvida...
Me levanto extremamente irritado, doido para ficar na cama mais um pouco. Estou com uma cara parecida com a do Garfield quando cai da cama na Segunda-Feira de manhã. Hora de ir ao banheiro, lavar o rosto, limpar os olhos e escovar os dentes.
Feito isso, hora de tomar café. Cafezinho simples, pão, queijo, uma xícara de café de ontem. Volto ao banheiro; hora do banho matinal.
Nada melhor do que um banho matinal, daqueles que relaxam e fazem a gente compensar o tempo que não dormiu, mas que eles nos atrasam, ah, isso sem dúvida. Perdi a hora; desligo o chuveiro rapidamente, saio, me enxugo, me visto o mais depressa que posso e saio, pegando as chaves do carro que estavam sob a mesa da sala.
Não moro longe; meia hora, vinte minutos, chego ao meu destino, se o trânsito estiver bom. No carro, tenho que estar atento a tudo o que acontece, mas a minha cabeça não está.
Que saco essa rotina. Tempo igual, vida igual, tudo igual. Hora que passa do mesmo jeito, segundo que corre da mesma forma, minuto eternamente igual. Tudo, tudo, tudo do mesmo jeito. Estou cansado – cansado de não fazer nada, cansado da rotina. A vontade é mudar o curso do carro e ir para algum lugar onde eu possa sentar, quem sabe uma praça.
Iria para a praça e estacionaria o carro ali. Algumas crianças iam brincar pelo lugar; não, não ia haver perigo algum. Babás iriam dar voltas na praça e conversar umas com as outras; senhores simpáticos, de calça xadrez, blusa azul e boina, iriam dar suas caminhadas na praça, passando pela igreja e fazendo o sinal da cruz. Sempre resmungando coisas como “o mundo não é mais como antigamente” e contando suas velhas histórias, velhas e belas histórias de um tempo que já não mais existe.
Eu ia me sentar num daqueles bancos de praça e ali permaneceria, quietinho. Jogaria o meu relógio o mais longe que pudesse e ia ficar sentado, sentindo o tempo passar devagarzinho, aquele ventinho gostoso de outono soprando de leve, levantando o cabelo da gente..
— Acorda, imbecil! Tá dormindo?
Voltando à realidade. O trânsito não perdoa mesmo, não se pode nem mais imaginar enquanto se dirige o carro!
Mundo real chato e cotidiano, das coisas que não mudam nunca...não agüento mais esse trânsito, esse caminho, essa vida...
Trabalho, aqui estou eu. Esse trabalho sempre estafante!
Entro estressado na minha sala, depois de pegar um elevador lotado. Exagero chamar de “minha”: é uma sala enorme, com algumas divisórias. Minha mesa é uma mesa pequena, perto da janela, e com certeza a mais bagunçada de todas!
Trabalha, trabalha, trabalha.
Lá embaixo, todo aquele movimento, todas aquelas pessoas passando, os carros, o ar meio poluído...melhor do que o do interior do escritório...e uma sensação de rotina, de prisão...
Podia eu estar lá embaixo. Sozinho, sem ninguém, ninguém mesmo. Uma parte vazia da cidade. Estaria andando. Jogaria o terno longe, tiraria a gravata, jogaria os sapatos ao vento, arremessaria o relógio o mais longe que pudesse e sairia caminhando. Não, também não existiria a violência. Andaria por onde fosse, calmo e tranqüilo, sem hora, tempo, nem razão.
— Acorda! Por acaso eu te pago pra ficar sonhando, é?
Chefe. Quer uma coisa mais na rotina do que chefe? Aquela pessoa que se comporta sempre da mesma forma, que te trata sempre do mesmo jeito, que vem com aquelas velhas idéias, que te conta centenas de vezes a mesma história. Coisa chata...
Sete horas, tá na hora de sair. Ufa. O mundo lá fora, enfim...
Estou mais estressado que nunca, esbravejando palavrões. Não me deixam mais sonhar, me tiraram o direito de sonhar. Merda. Eu não agüento mais essa rotina, essa vida, tudo igual, sempre igual. Ah, amanhã eu largo tudo. Não, não posso conceber. Não agüento isso. Vou procurar algo pra fazer, algo que me agrade mais...
Trânsito. Como eu odeio, sempre igual, sempre engarrafado, por onde quer que se vá. Sempre esse mesmo caminho...
Meus olhos se arregalam de repente, o estresse fica em segundo plano. Aquela é a Baía de Guanabara, muito iluminada, belíssima com suas luzes refletindo-se na água, e aquele vento batendo no rosto, e tudo mais...
Saindo do túnel, uma visão magnífica: a Lagoa, a Lagoa Rodrigo de Freitas, aquele espetáculo de luzes se refletindo na água, o ar de paz, aquela beleza toda...
Praia. Aquelas ondas batendo na areia, o vento forte, o coco gelado a qualquer hora...lindo, lindo, lindo.
Passo, o estresse volta. Bem menos pior, lógico, pois ver aquela imagem bela me deixou bem.
Trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrriiiiiiiiiiiimmmmmmm...
Celular. É a Amanda. Não acredito! Uma conversa rápida, estou dirigindo. Sair? Claro.
Um barzinho, um violão, um copo, um sorriso, um beijo.
Estresse? Onde? Largar tudo? Não sei quem foi que disse isso alguma vez. Impossível ficar estressado diante desse sorriso, desses olhos que parecem me dizer muita coisa, daquele beijo que pára tudo ao redor. Impossível largar tudo, não dá, não posso, não me vejo fazendo outra coisa, tendo outra vida. Impossível ficar estressado diante de uma cidade que se revela tão bela, capaz de, com uma visão, levar um cidadão ao êxtase, a sentir uma felicidade e uma renovação que nenhum outro lugar do mundo seria capaz de proporcionar.
Volto para casa feliz, um enorme sorriso no rosto, a madrugada já alta, a felicidade fluindo por todas as partes do corpo.
Amanhã começa tudo de novo...

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