É meio-dia, mês de Outubro, sol à pino. Desço do ônibus e começo a caminhar; atravesso uma rua, duas. Estou passando por uma praça, e por um instinto da natureza, olho para a placa de rua, aquele poste que tem uma marca de propaganda na parte mais alta e duas placas, que apontam a direção e dizem o nome da rua.
Permaneço andando e olhando para a placa. A distância entre eu e o poste começa a diminuir, até que passo por baixo dele, mantendo o olhar para cima. Qual não é minha surpresa quando eu noto, tremeluzentes e translúcidos, fios de teia de aranha habitando a placa...
Sim, fios de teia de aranha. A sujeira mais elementar de todas, a mais fácil de limpar – basta passar uma vassourinha e pronto – ali, habitando aquela placa.
Alguns irão me chamar de maluco, pelo estranho ato de olhar uma placa de rua de baixo para cima. Outros dirão que é uma sujeira “que não tem problema”, afinal “ninguém vê”, “ninguém nota”, “não incomoda ninguém”.
Acho que esse “não incomoda ninguém” é exatamente a idéia que levou o Rio de Janeiro a um completo abandono, chegando ao estado lastimável que se encontra hoje: totalmente podre, com os cantos, as placas, as árvores, o mar, tudo habitado por fios translúcidos e tremeluzentes de teia de aranha, o símbolo maior do abandono.
Acho que esse “não incomoda ninguém” é a mesma idéia que permitiu que os traficantes de drogas crescessem e tomassem conta da cidade. Deixa eles lá na favela, vendendo a droga deles, não é verdade? Não deixa a polícia subir lá não, afinal só vai dar dor de cabeça. Deixa eles lá vendendo a sua droguinha, eles “não incomoda ninguém” mesmo, não é verdade? Aí vem o bandido assaltar na Zona Sul, na porta da mansão, e a classe média e média alta fica horrorizada, se perguntando o que pode ser feito e até onde a situação vai chegar. Enquanto “não incomoda ninguém”, vai longe, muito longe mesmo.
Acho que esse “não incomoda ninguém” é a mesma idéia que leva o prefeito a não consertar os buracos das ruas. Ah, os buracos “não incomoda ninguém”, não é mesmo? A mesma idéia que leva o prefeito a não trocar a iluminação das ruas, afinal, uma rua escura “não incomoda ninguém”. Se aproveitando que “não incomoda ninguém”, bandidos e pivetes fazem a festa, assaltando e roubando pessoas que trabalham, lutam, suam o mês inteiro para ganhar o seu dinheiro e comprar um sonho qualquer, e mal conseguem aproveitar o sonho, ele é levado embora com a ajuda de uma arma...
Realidades e histórias de uma cidade partida, cansada, combalida, arrasada, e principalmente, abandonada. Parece que os presidentes paulistas gostam de deixar o Rio arrasado, afinal o Rio sem dinheiro “não incomoda ninguém”. Fica lá, no canto, deixando a violência explodir, as finanças quebrarem, a cidade ficar entregue às baratas, o estado investir em assistencialismo barato. Deixa, deixa, dizem todos. Deixa ele lá abandonado, como um morador de rua que ergue o chapéu pedindo uma moedinha. Deixa ele quieto, abandonado, não cuida dele não, não se preocupa com ele não. Afinal, ele quieto, pedindo esmola, “não incomoda ninguém”.
Rafael Cavalcanti é aluno de jornalismo, e por enquanto, seus textos “não incomoda ninguém”...
Wednesday, November 03, 2004
Não incomoda ninguém
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