O Jerônimo era um cara alegre, bem-humorado e muito sério quando se tratava de fazer alguma coisa, principalmente trabalho. Mas naquele dia não estava bem. Estava esquisito. Chegara atrasado pela primeira vez em vinte anos de firma. Fora beber um café e colocara sal em vez de açúcar. Esqueceu de ligar o computador e ficou reclamando que sua máquina estava com problema. Se atrapalhara todo na hora de fumar e beber café ao mesmo tempo, apagando o cigarro no copo e tentando beber as cinzas. Ficou o dia inteiro com o olhar perdido no horizonte, pensando no nada. Falava com monossílabos e cumprimentava com um "oi" em vez das frases enormes e felicitações de sempre.
No fim do expediente, angustiado com o comportamento do colega, o Paulinho o chamou para tomarem uma cerveja.
- Onde?
- Aqui em frente não está bom?
- Aqui em frente?
- È, Jerônimo, tem um bar aqui.
- Aqui? Mas não tô vendo nenhum balcão...nem cervejas...nem as eventuais baratas de sempre...entrei no lugar errado de novo? - perguntou o Jerônimo, que quase provocara uma hecatombe ao entrar por engano no banheiro das mulheres.
O Paulinho bufou.
- Não, Jerônimo, não...o bar aqui...aqui em frente à firma...sabe?
- Ah...esse. Não sei onde fica não, mas está bom.
- Mas você foi lá ontem!
- Ah é? Mas ontem não foi domingo?
- Não...foi quarta-feira, Jerônimo.
- Ah.
Foram ao bar. Sentaram e pediram uma cerveja. O Jerônimo não disse nada. Parecia com medo de esquecer que tinha se lembrado de algo. Ficou parado, olhando o vazio. Paulinho começou:
- O que é que há com você, Jerônimo? Molha o bico e me conta.
- Hã? O que? Não há nada...tá tudo bem.
- Pô, tem alguma coisa errada com você cara. Não é possível. Você nunca chega atrasado. Hoje chegou. É super atento, mas botou sal no café, tentou trabalhar com o computador desligado, entrou no banheiro das mulheres, foi dar dois beijinhos no chefe...
- Eu?
- É, você.
- Puxa...nem percebi.
- É, eu vi. O que tá pegando?
O Jerônimo parou por um instante...
- Bem, eu...
- ...você?
- Na verdade...
-...na verdade...
- Pode parar de repetir o que eu digo?
- Não. Agora bebe um gole dessa cerveja e fala logo o que você tem.
- Nah, daqui a pouco eu bebo. Bem...na verdade...é a insignificância do ser.
Paulinho fez cara de interrogação.
- Como assim?
- Um exemplo simples. Já parou pra pensar quantas músicas foram feitas, escritas e gravadas desde que entendemos o conceito moderno de música?
- Não.
- Pois é. Eu já. E fiquei impressionado.
- Com o resultado?
- Não, é que não consegui contar e percebi que esqueci tudo de matemática. Mas já pensou quantas músicas foram feitas e não chegaram a ser gravadas?
- É...mas o que isso tem a ver com a insignificância do ser? E olha, tua cerveja vai esquentar, desse jeito. Bebe logo.
- Daqui a pouco. Bem, deixa explicar...é que essa coisa da música deu margem a outras idéias. Já pensou quantas pessoas existem na Terra?
- Ah, mais de seis bilhões, por aí. Mas porque você...
- Em número é fácil, cara. Mas pensa assim...conhecendo.
- Não entendi.
- Quantas pessoas você conhece?
- Ih, um monte. Mas esquece isso e bebe um gole, Jerônimo.
- Agora não. Pois é, você conhece um monte de gente. Mas elas são uma fração mínima do número de pessoas que hoje habitam o planeta. E cada uma delas é uma fração menor ainda do espaço incrível que é o planeta, que é algo ínfimo perto do universo gigante onde vivemos.
- Agora só falta você falar das amebas.
- AS AMEBAS!!! Cara, como não pensei nisso? Se cada ser humano é ínfimo, imagina as amebas. E as bactérias que vivem nas amebas? Já pensou como são insignificantes perto do tamanho do universo? Genial! Paulinho, você nunca teve essas idéias?
- Não. Bebe, Jerônimo. A cerveja vai esquentar.
- Olha, você devia pensar mais nisso.
- Na temperatura da cerveja?
- Não! Devia pensar nesse negócio das amebas! Essas coisas fazem o mundo girar.
- Como assim?
- Veja...quando a gente pensa e fala o que pensa pro outro, o pensamento ínfimo se torna maior, pois é dividido entre duas pessoas. E quando dezenas de milhares pensarem a mesma coisa, ele se tornará ainda maior, deixando um pouco o estágio de "ínfimo" e virando algo pequenino.
- Tá, até é...mas agora deixa pra lá. Bebe, Jerônimo. Você vai se sentir melh...
Jerônimo parou por um instante, ficou de pé, apontou para o Paulinho e gritou, no meio do bar:
- CARA!!! Você concorda!!!! Você é dos meus!
Em seguida, abraçou o Paulinho, que ficou vermelho de vergonha, levantou discretamente e fez o Jerônimo sentar de novo na cadeira.
- Senta, Jerônimo...fica quieto...tá todo mundo olhando!
- Tá vendo? Tá vendo? É o pensamento se tornando algo menos que ínfimo. É a diminuição dessa tal insignificância do ser.
- Bebe, Jerônimo.
- Depois. Agora preciso continuar a expor a minha teoria. Já pensou? Se você conhecesse a fundo todas as seis bilhões de almas da Terra, continuaria a ser algo ínfimo perto da grandeza do universo.
- Tem certeza que não quer um golinho?
- Não. Bebe você. Isso. Deixa eu continuar. Pensa assim...cada estrela é algo mínimo no universo. E os planetas são mínimos perto de cada estrela. Mas eles são gigantes perto de cada ser.
- Bebe, Jerônimo. BEBE UM GOLE!!!!
- Isso. Um gole. UM GOLE! O que é um gole perto de toda a cerveja existente no mundo? Perto de toda a cerveja já consumida durante essas centenas de milhares de anos desde que foi inventado o próprio conceito de bebida alcóolica?
Paulinho se debruçou sobre a mesa e puxou o Jerônimo pra frente, ficando cabeça-a-cabeça com ele.
- Tu é um cara bem-humorado, mas sério. Não viaja desse jeito. Alguma coisa aconteceu ontem.
- Na verdade, a insignificância...
- Ah...já sei o que é.
Paulinho sorriu, triunfante, voltando a recostar na cadeira. Jerônimo ficou vermelho, começou a suar. Ajeitou o nó da gravata, parecia nervoso.
- Sabe?
- Sei. E pelo visto, acertei.
- A-acertou?
- Claro. Da última vez você não ficou viajando assim, porque estava tão animado com a festa da empresa e achando que ia se dar bem, que nem ligou. Mas agora a próxima festa é só ano que vem e hoje é um dia ruim pra sair. E você ficou triste e tentou distrair as idéias com outra coisa. E viajou na maionese.
- Eu...eu...
- Brigou com a Teresa de novo. E ela foi pra casa da mãe.
- Eu...na verdade...a insignificância...o gole de cerveja...
- Esquece.
- O universo, tão grande perto de cada pessoa...
- Bebe, Jerônimo.
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