Saturday, October 29, 2005

O doce e o amargo

O álcool tem um sabor extremamente amargo. Arde, queima a garganta, faz o estômago pegar fogo, sobe um calor que faz a gente suar que nem um porco (porco sua, por acaso?). Ao mesmo tempo, pode ser extremamente doce e agradável – se estiver, preferencialmente, em combinação com o ambiente e as pessoas em volta.
Não, meus amigos, esse não é um texto sobre minhas experiências alcoólico-etílicas, tampouco sobre uma bebedeira, uma ressaca, ou uma conversa de bêbado, ou ainda alguma coisa do gênero.
É noite no Rio de Janeiro. Amendoim, cerveja, caipirinha, fogo paulista, caninha 51, hoje tem até coca-cola. A noite, mais uma vez, começa no bar.
Sobre o balcão, estão aqueles velhos copos sujos e empoeirados, fonte de tanta alegria e tantas desilusões. Meio de esquecer – momentaneamente – todos os problemas, de rir, cantar alto e abraçar uma pilastra em movimentos ritimados. Meio de sentir uma puta dor de cabeça no dia seguinte, meio de ficar todo dolorido e não saber (!) como nem por que.
Enfim, quando o bar acaba, a hora é de se levantar – a música e a noite são duas crianças, daquelas irrequietas puxando a manga da camisa do pai, insistindo freneticamente, uma de cada lado. Hora de fazer as vontades dessas duas criaturas mimadas.
Movimentos frenéticos e sem ritmo marcam o passo, seguido sempre por um som...que é mais animador quando é conhecido. O álcool hoje foi doce, leve, não deixou suas marcas fortes, não me fez cair nem me sentir mal. A música, essa criança chata e insistente que não me deixa indecisão, resolveu ser boazinha hoje. Boazinha demais. Estou começando a suspeitar até que está aprontando alguma coisa, junto com a irmã noite.
O cansaço toma conta do corpo, e passo a assistir movimentos frenéticos. Acontece que tem alguém do meu lado que não está – NADA – bem.
Por coincidência ou não, está mal, passando muito mal, revirando os olhos, falando mole. Diz que foi ao banheiro vomitar e voltou.
E lá vou eu, e lá vai todo o grupo. Estamos com ele, firme e forte. Nada de mau pode acontecer. Vai passar. Essa semana foi ruim pra mim, mas...não pode ficar pior, pode?
Pode. Ele vomita, mas o estado não melhora. Reclama, pede para ir para casa, está mal, piora. Agora não consegue nem andar direito. Sai carregado, falando mole e dizendo que está cansado e precisa dormir.
Haja guaraná...e ele vomita todo o guaraná de volta. É, não tem jeito: glicose na veia...literalmente.
O mundo passa rápido pelas janelas do táxi, enquanto palavras de encorajamento ecoam por todo o carro. Estamos tentando. Não durma. Se mantenha acordado. Calma. Estamos aqui. Fique tranqüilo. Tá chegando.
Enfim, o hospital. Lá dentro, ele é devidamente colocado numa cadeira, e espera pela glicose. Alguém me avisa que não posso ficar aqui dentro...
Se não posso, vou lá pra fora. Estou de pé, diante das escadas de um hospital, esperando a melhora do amigo, sem saber nem direito o que fazer, com uma semana que ainda não digeri.
Meus instintos jornalísticos mudam o foco da minha atenção. Lá fora, policiais se abraçam e comemoram.
“Matamo o Bem-Te-Vi!”
“O cara caiu! Tá mortinho!”
Festa, comemoração. Morreu o bandido mais procurado do Rio.
Lá dentro, meu amigo começa a berrar por água e glicose.
Aqui fora, os policiais comemoram.
Sentado na escada, estou eu, sem saber direito o que fazer, sem saber como nem porque.
Lá dentro, apenas o silêncio. Melhor dormindo do que gritando.
Aqui fora, kombis encostam, trazendo vítimas do tiroteio. Todas andam, pensam e conseguem falar, mas estão com balas cravadas no corpo.
Do lado de dentro, apenas o silêncio. O silêncio que pode trazer a paz...bom, deixa pra lá.
Chega mais uma Kombi, trazendo um morador – parece que sua mulher foi baleada. Ele desce, e fica na porta do hospital, contando o que houve.
“Os cara tava tudo no bar. Tudo beberrão, não tinha traficante. Aí veio os traficante e pularam no bar. Aí pronto, veio a polícia baixando chumbo em cima de todo mundo. Pulei pra trás do balcão e rezei ‘meu Deus, me proteja, me guarde a vida!’. Ainda pegou de raspão aqui na perna. Aí depois os cara foram embora. Saí e resolvi ir pra casa, mas falei: valão não. Eles desceram pela Rua 4 e estouraram o valão. Tavam em cima da lage; se fosse por ali, eu levava chumbo. Não deu outra: passaram dois pelo meio da lage e foi só chumbo em cima: pá, pá, pá. Foi caindo e tudo. Falei: ‘ah, minha mulher veio atrás de mim...puta, será que ela levou tiro?’. Não deu outra: cheguei em casa e tava ela lá. A gente compreende o trabalho. Mas isso é covardia, cara, covardia. Chegaram atirando, e a gente não tinha nada de bandido!”
Lá dentro, permanece o silêncio, quebrado por uma certa expectativa. Bem-Te-Vi virá para o hospital? Os médicos não sabem, ninguém sabe.
Um carro encosta do lado de fora: é o Marcelo Itagiba. O morador vem falar com ele. Ao mesmo tempo, o chefe da polícia conversa com um outro, para saber onde foi o Bem-te.
“Foi pra lá mesmo” diz o outro.
Itagiba se prepara para sair, mas é interrompido pelo morador, que conta sua história. Não é possível ouvir o que o Itagiba fala, apenas pesco a última frase: “Boa sorte para a sua senhora.”
E sai, pega o carro e vai embora.
O tempo fica calmo, silêncio aqui fora e lá dentro. Enfim, ele sai, com o braço erguido, a fisionomia cansada, a glicose nas veias, ainda tremendo bastante.
Lá fora, lá na rua, o silêncio, apenas o silêncio.

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