Monday, January 21, 2008

A insignificância do ser

O Jerônimo era um cara alegre, bem-humorado e muito sério quando se tratava de fazer alguma coisa, principalmente trabalho. Mas naquele dia não estava bem. Estava esquisito. Chegara atrasado pela primeira vez em vinte anos de firma. Fora beber um café e colocara sal em vez de açúcar. Esqueceu de ligar o computador e ficou reclamando que sua máquina estava com problema. Se atrapalhara todo na hora de fumar e beber café ao mesmo tempo, apagando o cigarro no copo e tentando beber as cinzas. Ficou o dia inteiro com o olhar perdido no horizonte, pensando no nada. Falava com monossílabos e cumprimentava com um "oi" em vez das frases enormes e felicitações de sempre.
No fim do expediente, angustiado com o comportamento do colega, o Paulinho o chamou para tomarem uma cerveja.


- Onde?
- Aqui em frente não está bom?
- Aqui em frente?
- È, Jerônimo, tem um bar aqui.
- Aqui? Mas não tô vendo nenhum balcão...nem cervejas...nem as eventuais baratas de sempre...entrei no lugar errado de novo? - perguntou o Jerônimo, que quase provocara uma hecatombe ao entrar por engano no banheiro das mulheres.


O Paulinho bufou.


- Não, Jerônimo, não...o bar aqui...aqui em frente à firma...sabe?
- Ah...esse. Não sei onde fica não, mas está bom.
- Mas você foi lá ontem!
- Ah é? Mas ontem não foi domingo?
- Não...foi quarta-feira, Jerônimo.
- Ah.


Foram ao bar. Sentaram e pediram uma cerveja. O Jerônimo não disse nada. Parecia com medo de esquecer que tinha se lembrado de algo. Ficou parado, olhando o vazio. Paulinho começou:


- O que é que há com você, Jerônimo? Molha o bico e me conta.
- Hã? O que? Não há nada...tá tudo bem.
- Pô, tem alguma coisa errada com você cara. Não é possível. Você nunca chega atrasado. Hoje chegou. É super atento, mas botou sal no café, tentou trabalhar com o computador desligado, entrou no banheiro das mulheres, foi dar dois beijinhos no chefe...
- Eu?
- É, você.
- Puxa...nem percebi.
- É, eu vi. O que tá pegando?
O Jerônimo parou por um instante...
- Bem, eu...
- ...você?
- Na verdade...
-...na verdade...
- Pode parar de repetir o que eu digo?
- Não. Agora bebe um gole dessa cerveja e fala logo o que você tem.
- Nah, daqui a pouco eu bebo. Bem...na verdade...é a insignificância do ser.
Paulinho fez cara de interrogação.
- Como assim?
- Um exemplo simples. Já parou pra pensar quantas músicas foram feitas, escritas e gravadas desde que entendemos o conceito moderno de música?
- Não.
- Pois é. Eu já. E fiquei impressionado.
- Com o resultado?
- Não, é que não consegui contar e percebi que esqueci tudo de matemática. Mas já pensou quantas músicas foram feitas e não chegaram a ser gravadas?
- É...mas o que isso tem a ver com a insignificância do ser? E olha, tua cerveja vai esquentar, desse jeito. Bebe logo.
- Daqui a pouco. Bem, deixa explicar...é que essa coisa da música deu margem a outras idéias. Já pensou quantas pessoas existem na Terra?
- Ah, mais de seis bilhões, por aí. Mas porque você...
- Em número é fácil, cara. Mas pensa assim...conhecendo.
- Não entendi.
- Quantas pessoas você conhece?
- Ih, um monte. Mas esquece isso e bebe um gole, Jerônimo.
- Agora não. Pois é, você conhece um monte de gente. Mas elas são uma fração mínima do número de pessoas que hoje habitam o planeta. E cada uma delas é uma fração menor ainda do espaço incrível que é o planeta, que é algo ínfimo perto do universo gigante onde vivemos.
- Agora só falta você falar das amebas.
- AS AMEBAS!!! Cara, como não pensei nisso? Se cada ser humano é ínfimo, imagina as amebas. E as bactérias que vivem nas amebas? Já pensou como são insignificantes perto do tamanho do universo? Genial! Paulinho, você nunca teve essas idéias?
- Não. Bebe, Jerônimo. A cerveja vai esquentar.
- Olha, você devia pensar mais nisso.
- Na temperatura da cerveja?
- Não! Devia pensar nesse negócio das amebas! Essas coisas fazem o mundo girar.
- Como assim?
- Veja...quando a gente pensa e fala o que pensa pro outro, o pensamento ínfimo se torna maior, pois é dividido entre duas pessoas. E quando dezenas de milhares pensarem a mesma coisa, ele se tornará ainda maior, deixando um pouco o estágio de "ínfimo" e virando algo pequenino.
- Tá, até é...mas agora deixa pra lá. Bebe, Jerônimo. Você vai se sentir melh...


Jerônimo parou por um instante, ficou de pé, apontou para o Paulinho e gritou, no meio do bar:


- CARA!!! Você concorda!!!! Você é dos meus!


Em seguida, abraçou o Paulinho, que ficou vermelho de vergonha, levantou discretamente e fez o Jerônimo sentar de novo na cadeira.


- Senta, Jerônimo...fica quieto...tá todo mundo olhando!
- Tá vendo? Tá vendo? É o pensamento se tornando algo menos que ínfimo. É a diminuição dessa tal insignificância do ser.
- Bebe, Jerônimo.
- Depois. Agora preciso continuar a expor a minha teoria. Já pensou? Se você conhecesse a fundo todas as seis bilhões de almas da Terra, continuaria a ser algo ínfimo perto da grandeza do universo.
- Tem certeza que não quer um golinho?
- Não. Bebe você. Isso. Deixa eu continuar. Pensa assim...cada estrela é algo mínimo no universo. E os planetas são mínimos perto de cada estrela. Mas eles são gigantes perto de cada ser.
- Bebe, Jerônimo. BEBE UM GOLE!!!!
- Isso. Um gole. UM GOLE! O que é um gole perto de toda a cerveja existente no mundo? Perto de toda a cerveja já consumida durante essas centenas de milhares de anos desde que foi inventado o próprio conceito de bebida alcóolica?


Paulinho se debruçou sobre a mesa e puxou o Jerônimo pra frente, ficando cabeça-a-cabeça com ele.


- Tu é um cara bem-humorado, mas sério. Não viaja desse jeito. Alguma coisa aconteceu ontem.
- Na verdade, a insignificância...
- Ah...já sei o que é.
Paulinho sorriu, triunfante, voltando a recostar na cadeira. Jerônimo ficou vermelho, começou a suar. Ajeitou o nó da gravata, parecia nervoso.
- Sabe?
- Sei. E pelo visto, acertei.
- A-acertou?
- Claro. Da última vez você não ficou viajando assim, porque estava tão animado com a festa da empresa e achando que ia se dar bem, que nem ligou. Mas agora a próxima festa é só ano que vem e hoje é um dia ruim pra sair. E você ficou triste e tentou distrair as idéias com outra coisa. E viajou na maionese.
- Eu...eu...
- Brigou com a Teresa de novo. E ela foi pra casa da mãe.
- Eu...na verdade...a insignificância...o gole de cerveja...
- Esquece.
- O universo, tão grande perto de cada pessoa...
- Bebe, Jerônimo.

Tuesday, January 08, 2008

As duas faces da paisagem

433. Mais um Dia de trabalho, mais uma noite de volta para casa. Tudo tranqüilo, ônibus silencioso, via sem trânsito. Oito e meia. Há tempos o Rio já acendeu suas luzes nos postes e há menos gente circulando nas ruas. Medo, talvez. Cansaço, quem sabe. A cidade segue rumo a mais uma de tantas madrugadas.
O ônibus virou a curva na Rua Teixeira de Freitas e entrou na Avenida Beira-Mar, na Glória, seguindo em direção à Praia do Flamengo. A velocidade é alta, mas nada excessivo: o motorista hoje não está com tanta pressa e posso admirar a paisagem.
Quando chegamos perto da curva do Hotel Glória, ali naquela praça onde fica o Memorial Getúlio Vargas, olhei pela janela e vi alguma coisa se mexendo entre as árvores. Cortando o silêncio da praça, que de tão silenciosa chega a ser sombria, estava um "moleque de rua". Devia ter entre 12, 14 anos, negro, short, camiseta e boné. Corria como nunca, atravessando a praça com alguma coisa na mão. Pouco depois percebi o motivo da correria: um homem meio careca, gordo, de camisa social, calça e sapato, corria atrás do garoto. "MINHA CARTEIRA!!!! PEGA LADRÃO!!!".
Ninguém para acudir, em meio à rua deserta. As cabeças dos passageiros do ônibus se voltaram para assistir à cena. Mais rápido, o garoto deixou a praça, atravessou as pistas da Praia do Flamengo e entrou em uma mata perto de um posto de gasolina. O homem ficou parado, ali, arfando, sem ter o que fazer. E o ônibus acelerou e fez a curva, deixando a cena para trás.

Quase 20 minutos depois...

Agora são quase nove horas. Estamos saindo de Copacabana, a famosa Princesinha do Mar, pelo Corte do Cantagalo, para entrar na Lagoa e chegar ao Leblon. Quase não há mais passageiros no ônibus, que está mais silencioso que nunca. O trocador abandona seu posto e se senta num banco de passageiro, bem relaxado, conversando algo com o motorista. Estamos chegando.
Cruzando o Corte e fazendo a curva em forma de 9, entramos na Lagoa. Algumas árvores depois, o espetáculo: o espelho d´água parado, sem vento, iluminado sob as luzes das dezenas de postes que existem em suas margens, refletindo as luzes da cidade à noite, refletindo a lua, aquela cena: a lagoa brilhante, os prédios, o Cristo Redentor ao fundo.
Um êxtase para os olhos cansados do Dia de trabalho. Dá vontade de exclamar um "aaaaaaaaahhhh", ou outra onomatopéia de espanto qualquer. Belíssimo. O tipo de espetáculo que só o Rio é capaz de proporcionar.
E enfim, chego em casa. E, pensando nas duas cenas que vi na mesma noite, o crime e a bela paisagem, paro pra pensar...
Há algum tempo atrás, ainda na escola, tive de fazer uma redação com base em um texto que dizia que o Rio estava se tornando uma "inútil paisagem", apenas para ser vista de longe. Meu texto dizia que não: a paisagem não será inútil enquanto houver gente que lute pelo contrário. Enquanto houver gente que batalhe para melhorar a cidade, as paisagens não serão apenas para serem vistas de longe.
Hoje vejo que essa idéia que defendi é meio "furada". Mas a despeito disso, hoje concordo em parte com o autor do texto. Adoro essa cidade, mas viver aqui está ficando muito difícil. Falta emprego, faltam investimentos em todas as áreas, falta segurança, falta gente interessada em lutar por uma cidade melhor. Sobram mendigos e "moleques de rua" sem oportunidade, sobram assaltos, violência, sujeira, buracos nas ruas e um descaso completo, em todos os níveis. Impossível sair na rua sem sentir medo, impossível pegar um ônibus sem temer um assalto. Tentamos criar regras e normas de segurança que se mostram totalmente paliativas, devido ao tamanho do problema.
As belas paisagens, por exemplo, estão abandonadas. Visitar um ponto turístico como um mirante significa risco de assalto. Tudo se torna algo "para ver de longe". A beleza do Rio, que também já esteve no "jeito carioca" de ser, está se tornando apenas algo plástico, do cenário, devido ao desânimo cada vez maior de quem mora aqui - boa parte dessas pessoas, porque não tem como ir embora.
E como mudar? Não sei, sinceramente. E isso também me preocupa muito.

Monday, January 07, 2008

O sonhador, o vento e o banco do parque

Meia-noite. Sem pressa, ele caminhava devagar por entre as árvores, seguindo pela alameda iluminada apenas pela luz da lua, e cercada de árvores dos dois lados. Depois de uma curva, estava lá o imenso portão de aço, todo enferrujado, que rangia terrivelmente toda vez que se abria.
Com o máximo de cuidado que era possível, ele ergueu uma das mãos, tirando-a dos bolsos de seu sobretudo, e empurrou o portão. O rangido se espalhou por toda a floresta, como um grito na noite. Parecendo não se importar, ele entrou, caminhou mais um pouco até chegar ao velho banco de praça, e então se sentou. Uma leve brisa soprou, refrescando a noite e levantando as folhas do chão do parque.
Há quanto tempo não se sentava naquele banco de praça? Três? Quatro anos? Mais, talvez. Muito menos, quem sabe. Houve uma época em que costumava ficar ali, admirando a lua e as estrelas, tendo idéias. Houve uma época em que achou que isso não servia para nada. Mas quem disse que tudo na vida tem de servir para alguma coisa?
Meteu a mão no bolso esquerdo da capa e sacou um maço de cigarro e um isqueiro. Retirou um cigarro, acendeu, tragou, cuspiu a fumaça, tirou o cigarro da boca...e ficou pensando. Tanta coisa acontecera enquanto esteve longe de seu banco de praça. Tantos amigos. Tantos chopes. Tantas coisas engraçadas. Tantas mulheres. Tantos beijos, abraços, cumprimentos, risadas, bons momentos. Tantos lugares bons, tantos jogos divertidos, tantas bebidas maravilhosas, tantas aventuras. E que coisa engraçada, nada havia permanecido. Tudo passou.
O vento voltou a soprar, e carregou para longe uma das folhas daquele chão de outono. Sim, pensei, aqueles momentos, desde a última vez que havia me sentado no banco de praça, eram cada um como uma daquelas folhas, que permaneciam ali no chão criando um ambiente bonito, poético, com o banco de praça ao fundo, o cara sentado fumando no escuro, apenas a lua iluminando a cena, como um holofote daqueles de monólogo de teatro. Aquela folha que voou na minha frente parecia um desses momentos que passam. E a vida agora, para mim, parecia o chão à minha frente: um campo aberto, sem nada a se preencher.
Como realmente o tempo havia passado. Dois? Três? Quatro anos? Como uma mola comprimida pela imagem da folha, as lembranças começaram a voltar à mente dele. Agora não pareciam tão boas assim. A derrota do Brasil na Copa, frustrações amorosas, pessoais e profissionais, erros cometidos pelo caminho, besteiras que não precisavam ser ditas, mancadas verbais e físicas, dores, choros, sofrimento. A música que lembrava quem ele queria esquecer, as músicas que recordavam seu tempo de infância e quase o levavam às lágrimas, as coisas que fizera e que achava que tinham sido perda de tempo. E que coisa engraçada, nada havia permanecido. Tudo passou.
Novamente o vento soprou, agora mais forte, trazendo poeira e mais folhas em plena madrugada de outono. Fechou os olhos com força e baixou a cabeça, tentando evitar que a poeira atingisse seus olhos. O cigarro apagou. Mais folhas pararam na frente do banco. Ele abriu os olhos devagar. Como que teimando, o vento voltou a soprar, em uma brisa muito leve, e levou as folhas embora de novo, deixando o chão vazio.
Larguei o cigarro, as lágrimas começaram a rolar pelo rosto. Retirei as mãos dos bolsos e levei aos olhos, soluçando. Não conseguia me conter. Chorava. A natureza agora decidira ser metafórica e falar de acordo com meus sentimentos? Até ela estava contra mim agora, decidira ventar e levar para longe o que era bom e o que fora ruim? Como se já não bastasse todas as dúvidas, ainda havia algo de metafórico naquilo tudo? O que fora a minha vida no tempo em que não estive sentado no banco do parque, ou da praça, ou seja lá qual for o banco? Um amontoado de folhas que embelezam a paisagem e são carregadas embora pelo vento? Uma imagem poética de um texto de blog “madrugante” (considerando que “madrugante” não é necessariamente um texto escrito pelo Seu Madruga) ? O que, afinal, eu construíra durante esse tempo do lado de fora do parque, longe do banco mas nem tanto assim?
E como que respondendo, o vento soprou novamente, atingindo seu rosto com força. Ele enxugou as lágrimas, tentou se controlar. Não sabia. Não tinha as respostas prontas. Nem com quem conversar, agora que o vento levara tudo. Então, pegou o cigarro e o atirou longe, e voltou as mãos aos bolsos. Parou de pensar. Ficou apenas contemplando a paisagem do parque “madrugante” (que não, não necessariamente é o parque onde mora o Seu Madruga). Olhando a sombra das árvores escuras, o brilho das estrelas no horizonte, a lua que o iluminava, como num daqueles velhos monólogos de teatro. Se não tinha nada, então olharia o que estava em volta, sem se preocupar.
E o vento soprou pela última vez, trazendo folhas que passaram e deixando outras aos pés dele, em meio à fria madrugada de outono.