Friday, November 23, 2007
Thursday, May 31, 2007
Janela do mundo
Desde que vovô morreu, vovó se isolou do mundo.Foi um assalto - uma coisa horrível e comum esses dias. Terminou com um tiro certeiro no coração. O casamento era "daqueles de antigamente", com anos e anos de estrada e vida em comum, e a impressão de que estariam juntos para sempre. Ledo engano – “sempre” é uma palavra que não cabe na vida humana. No lugar da vida sossegada e tranqüila que é o sonho de toda velhice, vovó se tornou uma pessoa fechada, recolhida, triste. Mas em vez de verter lágrimas, deixou, aos poucos, de sair, de andar pelas ruas "nem tão tranqüilas" do bairro onde mora. Em vez disso, a portaria do prédio tornou-se a janela de vovó para o mundo. Como se ela quisesse um meio-termo entre a segurança do apartamento e o mundo lá fora. É para lá que ela vai, todas as tardes, "espiar o movimento". Na maioria das vezes, fica em pé mesmo: passa o carteiro, o amolador de facas (que está pensando em desistir da profissão, já que hoje todas as facas vêm amoladas), o marido da dona da floricultura, a dona Josefina do 703 (que vai todas as tardes passear com o cachorro na praia), o velho Seu Leal, o chaveiro (que está quase mudando o nome para Seu DesLeal, devido à enorme concorrência – essa foi horrível), o Seu Ferreira sapateiro, o homem que trabalha na padaria. E não só conhecidos: ontem chegou o homem que veio consertar o poste, o dono do prédio (de todos os apartamentos) chegou cinco minutos atrasado, o porteiro não veio porque estava doente. O ônibus fechou o carro e quase cria um acidente enorme, o taxista brigou com o outro e veio discutindo do ponto de lá até aqui, a fechadura quebrou quando aquele "bruto do 703" tirou a chave e arrancou tudo junto.
E lá ela continua, vendo o movimento, por horas e horas a fio. A portaria virou a janela de vovó.
E o próximo trem - parte 2
Calma. Tudo passa, mesmo. Não adianta você empurrar as pessoas na saída do metrô. Às vezes é necessário esperar pelo próximo. A espera acalma, faz refletir sobre coisas engraçadas, e gera bons textos que vão pro blog depois. Faz parte.
Vamos lá. Começando pela saída do metrô. Devagar, sem pressa, sem correria, seguindo o fluxo, como se não tivesse hora. Bom, mesmo porque, não tenho.
Guarda-chuva ainda em punho, olho meio apertado, capa de chuva aberta no peito, calça jeans e camisa verde. Ei, esse aí sou eu. Infelizmente, continuo pensando. Sei que não devia. Quem sabe um dia eu aprendo e deixo isso pra lá, e passo a pensar mais quando devia e menos quando não precisa.
Porque afinal, sempre que penso...bom, quem leu o texto anterior sabe.
Pior que, escrever sobre isso tá me fazendo pensar, também. E sempre que penso...hehe.
Tem problema não. Quem disse que a gente precisa se achar o tempo todo, e que ficar perdido de vez em quando não é bom?
De vez em quando.
Voltamos à nossa programação normal...
E lá vou eu. Sabe que nunca peguei escada rolante com calma? Tava sempre correndo, querendo ultrapassar todo mundo, entrar logo no trem, pegar logo o próximo, ser o primeiro na porta.
Dessa vez, vou com calma, mesmo. Vamos ver de qual jeito é melhor.
Lá em cima, ouço o apito do trem, e acabo de perceber que ele é o próximo. Olha só. O próximo trem está parado na plataforma, porta aberta, esperando entrar. Só que ele tem um tempo curto, e logo tá apitando de novo, e partindo. E se não correr, não pega.
E daí? O próximo não é o último...como aliás eu sei desde pequeno. Só que é tão mais fácil não ver.
Ao chegar no topo da escada, o próximo trem (já ia escrever “último”, vejam vocês) ainda está lá. Mas não tenho pressa, nem vou correr. Não tô com vontade, pronto.
Passam por mim pessoas desesperadas, correndo, quase atropelando umas às outras, com o (escrevi “nefasto”, mas apaguei) simples objetivo de alcançar o próximo trem, e partir com ele para terras não tão distantes assim.
Não quero, não vou correr. Poupem-me.
Um ser de mais idade passa por trás de mim, e atropela a mochila que trago às costas...e lá vai ele.
Agora estou em frente à porta do trem, o barulho começando a soar, o apito indicando a partida próxima.
O próximo trem está me chamando, deve ser por isso que apita. Está me dando a chance de embarcar, e seguir rumo à próxima estação...seja lá o que existir do outro lado do túnel.
Ou eu que estou me dando essa oportunidade.
Seja lá como for, embarquei no próximo trem.
Ou seria “mais um”?
Friday, April 27, 2007
Sob o pôr-do-sol de um dia comum
A última repetição da música soou como um lamento para os meus cansados ouvidos. Sob uma mistura de aplausos, palmas, choro, desespero e saudade, ele foi enterrado. Oficialmente, sua vida terminava ali.
Foi mais uma vítima da violência. Morto por um motivo estúpido: foi comprar uma cerveja na padaria, alguém passou atirando, errou o alvo e o acertou na cabeça. Queriam matar outro, ele pagou o pato. Novo ainda, 42 anos, publicitário bem sucedido, classe média da Zona Sul do Rio.
Sexta-feira, quatro e meia da tarde. No enterro, amigos e parentes. De imprensa, só eu. Afinal, é só mais um morto, mais uma vítima como tantas. Fica a velha questão... "o que vai ser do jornal de amanhã se formos a todos os enterros da cidade?".
O desespero de sua sobrinha e de sua noiva era imenso. Da noiva então, nem se fala. Iam se casar em breve. Debruçada sobre o caixão aberto, com o corpo dele inerte, coberto de flores, ela se derramava em lágrimas. Gritava que não pode ser, que assim não dá, que ele morreu. A rosa que segurava na mão direita pareceu murchar de tanta tristeza.
Gente amiga também chora, também sente. Muitos não tem o que dizer. Alguns falam. Um conversa comigo. Mas...dizer o que? Falar o que numa hora dessas? É o velho "estava no lugar errado, na hora errada". Mas, por Deus, que cidade é essa onde todos os lugares são errados e todas as horas são impróprias? Estar comprando uma cerveja na padaria em frente à sua casa é estar no lugar errado? Ou será que vivemos numa cidade toda errada?
O cortejo segue cemitério adentro, levando o caixão. O rito agora é silencioso, sem choro, e os presentes seguem todos de cabeça baixa. Olho em volta, lendo as inscrições nas lápides. É muita gente enterrada. Olho por cima das lápides. Meu Deus, como tem gente enterrada aqui. Como tem gente que viveu e morreu nesse planeta anos antes de eu nascer. Que coisa isso de vida e morte. Que coisa essas frases de saudade, "por tudo o que me destes". Muita gente partiu dessa vida antes de eu sonhar em existir...
O cortejo segue. Vira à direita no primeiro cruxifixo, segue adiante, lá embaixo dobra à esquerda e começa a subir. Sobe sobe sobe sobe sobe sobe sobe... e "segura aqui, vai com cuidado...é ali na terceira, adiante".
É o fim. Os parentes e amigos se aglomeram em volta de várias lápides, que, sendo como são, colocadas uma por cima da outra, me lembram um monte de gavetas num arquivo sem fim. Desenhadas em cada uma estão inscrições de saudade, datas de morte e nascimento, nomes de pessoas. Todas mortas. Mortas. Não se mexem, não falam. Mortas. Estão em outro plano? Terão desaparecido? Estarão no céu ou no inferno? Ou vivendo de novo?Em uma "gaveta" sem identificação, o coveiro coloca o caixão dele. Antes que possa fechar a entrada com uma pá e cimento (é cimento mesmo?), a sobrinha se debruça sobre o caixão, chorando, deixando uma flor para o tio. "Ele morreu...não...não acredito...vai em paz...descanse...eu te amo, tio, eu te amo..."
Alguém começou a falar, bem atrás de mim: "O fulano era ótimo. Uma pessoa muito boa, maravilhosa. Se alguém estava com problema, ele parava e perguntava 'quer ajuda, tá precisando'? Uma salva de palmas para ele!"
A saudade se misturou com a tristeza, e atendendo ao pedido, os presentes bateram palmas, calorosamente. Enquanto isso, o coveiro pegou a pá e começou a fechar a entrada da lápide com cimento (é cimento mesmo?). Dei as costas para o enterro propriamente dito e comecei a observar o cemitério, lá do alto.
A cena jamais sairá da minha cabeça. Sob um pôr-do-sol de um dia comum, de um céu azul claro, havia dezenas, centenas, milhares de lápides e túmulos, se estendendo de norte a sul, de leste a oeste, para muito além do meu campo de visão. Nas "gavetas" próximas ao ponto onde eu estava, havia centenas de frases, inscrições, palavras de saudade, nomes, datas de morte e nascimento.
Gertrudes, saudades eternas. + 1920 *1975
Amélia, descanse em paz. +1930 *1982
Fraíldo, muitas saudades. +1935 *1978
É assim que termina a vida? Vou estar ali do outro lado um dia – se é que morto "está"? E a multidão começou a cantar:
O tempo passa
E com ele caminhamos todos juntos
Sem parar
Passos que ficam no chão
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
...sob o pôr-do-sol de um dia comum, dezenas, centenas, milhares de lápides e túmulos, se estendendo de norte a sul, de leste a oeste, para muito além do meu campo de visão...
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
...nas "gavetas" próximas ao ponto onde eu estava, centenas de frases, inscrições, palavras de saudade, nomes, datas de morte e nascimento...
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
A última repetição da música soou como um lamento para os meus cansados ouvidos. Sob uma mistura de aplausos, palmas, choro, desespero e saudade, ele foi enterrado. Oficialmente, sua vida terminava ali.
Desci, me despedi do amigo que falara comigo mais cedo e comecei a caminhar, sozinho, em direção à porta do cemitério.
O tempo passou mas nem tanto assim. Na hora do sagrado sono daquela sexta-feira, deitei na cama, fechei os olhos...e apareceu o cemitério, do alto, suas centenas de túmulos e gente morta, com a música ao fundo. Abri os olhos, respirei fundo, voltei a fechá-los...e novamente apareceu o cemitério, as centenas, dezenas de lápides, as inscrições de vida, morte e saudade, sob o pôr-do-sol de um dia comum. Com a música ao fundo.
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer
Sono ou morte. Seja como for...descanse em paz.
Tuesday, January 30, 2007
Imagens
A entrada de um túnel de Copacabana vista da janela de um ônibus Frescão. O cheiro de pão, café e manteiga às 7 da manhã de um dia qualquer. Algum lugar em Niterói de carro à noite, um apartamento, luz amarelada de mercúrio e roupas sendo mostradas a alguém. Duas pessoas passando de um carro para outro, com os dois em movimento, e ninguém se machuca. Gelatina de limão numa festa em algum play longínquo, há muito tempo. Um elevador todo branco, decorado com pintura dourada, subindo, com várias pessoas dentro conversando. A praça perto de casa. Uma tapeçaria na parede do corredor de um apartamento. O interior de um túnel de Copacabana visto de dentro da janela de um ônibus vindo de Teresópolis. Uma praça de Copacabana cujo nome esqueci, à noite, toda iluminada. O interior de um carro. Um ônibus escolar cheio de crianças gritando enquanto o motorista trafega pela Lagoa e tenta fazer todos calarem a boca. Meu pai e eu discutindo sobre um milk-shake numa lanchonete de Copacabana. Banho de banheira na casa da avó. A barrica de madeira onde eu guardava brinquedos. As conversas com o baixinho que morou em cima da estante de discos até eu fazer uns quatro anos. Eu assistindo aos vários jornais da TV: o da terra, o do Rio, e o rosa (com a Marília Gabriela). Uma festa no prédio da minha avó. Eu jogando quadradobol. Rodízio de pizza aos seis anos de idade. Dias e dias brincando sem parar no Clube Federal. Ida a algum lugar longe, de carro, com a família toda, e alguém gritando “brinca de pipoca na panela”. Doze horas no aeroporto esperando avião. Gibi da Turma da Mônica em Recife. Gibi do Chaves em Recife. Mais gibi da Turma da Mônica em Recife. Sorvete em Recife. Mate em Recife. Caixote na praia de Boa-Viagem, em Recife. Genius em Recife. Eu pegando no sono em algum hotel em Recife, depois de sair. Pão de queijo em Juiz de Fora. Sorvete em Goiânia. Visita à escola, algum dia, alguma hora. Aula de trabalhos manuais. Sono vindo, um dia qualquer.