Friday, April 27, 2007

Sob o pôr-do-sol de um dia comum

Marcas do que se foi / sonhos que vamos ter / como todo dia nasce / novo em cada amanhecer...

A última repetição da música soou como um lamento para os meus cansados ouvidos. Sob uma mistura de aplausos, palmas, choro, desespero e saudade, ele foi enterrado. Oficialmente, sua vida terminava ali.
Foi mais uma vítima da violência. Morto por um motivo estúpido: foi comprar uma cerveja na padaria, alguém passou atirando, errou o alvo e o acertou na cabeça. Queriam matar outro, ele pagou o pato. Novo ainda, 42 anos, publicitário bem sucedido, classe média da Zona Sul do Rio.
Sexta-feira, quatro e meia da tarde. No enterro, amigos e parentes. De imprensa, só eu. Afinal, é só mais um morto, mais uma vítima como tantas. Fica a velha questão... "o que vai ser do jornal de amanhã se formos a todos os enterros da cidade?".
O desespero de sua sobrinha e de sua noiva era imenso. Da noiva então, nem se fala. Iam se casar em breve. Debruçada sobre o caixão aberto, com o corpo dele inerte, coberto de flores, ela se derramava em lágrimas. Gritava que não pode ser, que assim não dá, que ele morreu. A rosa que segurava na mão direita pareceu murchar de tanta tristeza.
Gente amiga também chora, também sente. Muitos não tem o que dizer. Alguns falam. Um conversa comigo. Mas...dizer o que? Falar o que numa hora dessas? É o velho "estava no lugar errado, na hora errada". Mas, por Deus, que cidade é essa onde todos os lugares são errados e todas as horas são impróprias? Estar comprando uma cerveja na padaria em frente à sua casa é estar no lugar errado? Ou será que vivemos numa cidade toda errada?
O cortejo segue cemitério adentro, levando o caixão. O rito agora é silencioso, sem choro, e os presentes seguem todos de cabeça baixa. Olho em volta, lendo as inscrições nas lápides. É muita gente enterrada. Olho por cima das lápides. Meu Deus, como tem gente enterrada aqui. Como tem gente que viveu e morreu nesse planeta anos antes de eu nascer. Que coisa isso de vida e morte. Que coisa essas frases de saudade, "por tudo o que me destes". Muita gente partiu dessa vida antes de eu sonhar em existir...
O cortejo segue. Vira à direita no primeiro cruxifixo, segue adiante, lá embaixo dobra à esquerda e começa a subir. Sobe sobe sobe sobe sobe sobe sobe... e "segura aqui, vai com cuidado...é ali na terceira, adiante".
É o fim. Os parentes e amigos se aglomeram em volta de várias lápides, que, sendo como são, colocadas uma por cima da outra, me lembram um monte de gavetas num arquivo sem fim. Desenhadas em cada uma estão inscrições de saudade, datas de morte e nascimento, nomes de pessoas. Todas mortas. Mortas. Não se mexem, não falam. Mortas. Estão em outro plano? Terão desaparecido? Estarão no céu ou no inferno? Ou vivendo de novo?Em uma "gaveta" sem identificação, o coveiro coloca o caixão dele. Antes que possa fechar a entrada com uma pá e cimento (é cimento mesmo?), a sobrinha se debruça sobre o caixão, chorando, deixando uma flor para o tio. "Ele morreu...não...não acredito...vai em paz...descanse...eu te amo, tio, eu te amo..."
Alguém começou a falar, bem atrás de mim: "O fulano era ótimo. Uma pessoa muito boa, maravilhosa. Se alguém estava com problema, ele parava e perguntava 'quer ajuda, tá precisando'? Uma salva de palmas para ele!"
A saudade se misturou com a tristeza, e atendendo ao pedido, os presentes bateram palmas, calorosamente. Enquanto isso, o coveiro pegou a pá e começou a fechar a entrada da lápide com cimento (é cimento mesmo?). Dei as costas para o enterro propriamente dito e comecei a observar o cemitério, lá do alto.
A cena jamais sairá da minha cabeça. Sob um pôr-do-sol de um dia comum, de um céu azul claro, havia dezenas, centenas, milhares de lápides e túmulos, se estendendo de norte a sul, de leste a oeste, para muito além do meu campo de visão. Nas "gavetas" próximas ao ponto onde eu estava, havia centenas de frases, inscrições, palavras de saudade, nomes, datas de morte e nascimento.

Gertrudes, saudades eternas. + 1920 *1975
Amélia, descanse em paz. +1930 *1982
Fraíldo, muitas saudades. +1935 *1978

É assim que termina a vida? Vou estar ali do outro lado um dia – se é que morto "está"? E a multidão começou a cantar:

O tempo passa
E com ele caminhamos todos juntos
Sem parar
Passos que ficam no chão
Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer

...sob o pôr-do-sol de um dia comum, dezenas, centenas, milhares de lápides e túmulos, se estendendo de norte a sul, de leste a oeste, para muito além do meu campo de visão...

Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer

...nas "gavetas" próximas ao ponto onde eu estava, centenas de frases, inscrições, palavras de saudade, nomes, datas de morte e nascimento...

Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer

A última repetição da música soou como um lamento para os meus cansados ouvidos. Sob uma mistura de aplausos, palmas, choro, desespero e saudade, ele foi enterrado. Oficialmente, sua vida terminava ali.
Desci, me despedi do amigo que falara comigo mais cedo e comecei a caminhar, sozinho, em direção à porta do cemitério.
O tempo passou mas nem tanto assim. Na hora do sagrado sono daquela sexta-feira, deitei na cama, fechei os olhos...e apareceu o cemitério, do alto, suas centenas de túmulos e gente morta, com a música ao fundo. Abri os olhos, respirei fundo, voltei a fechá-los...e novamente apareceu o cemitério, as centenas, dezenas de lápides, as inscrições de vida, morte e saudade, sob o pôr-do-sol de um dia comum. Com a música ao fundo.

Marcas do que se foi
Sonhos que vamos ter
Como todo dia nasce
Novo em cada amanhecer

Sono ou morte. Seja como for...descanse em paz.

1 comment:

Anonymous said...

Perche non:)